NOTA DA AUTORA: ao conversar ontem com alguns amigos, percebi que muitos não conhecem a história de Maria e do alemão. Este foi o primeiro conto que escrevi, e mesmo já o tendo publicado em Letras et cetera, acredito que os muitos que não o leram irão gostar. A versão a seguir sofreu algumas modificações em relação à primeira versão publicada aqui - o que é melhor, pois mesmo aqueles que já conhecem o conto terão motivos para lê-lo novamente. ;)
MARIA E O ALEMÃO (E EU)
"Cala
a boca, Maria, que eu quero tomar o meu chá!" E assim estreou-se mais um
dia no boteco do Adolfo, alemão grande e vermelho, gordo como uma porca prenha.
O boteco era sujo, cheirava a queijo azedo e urina, e Adolfo exalava lavanda
barata. Vestia uma camisa azul que tinha os últimos botões abertos por causa da
barriga sobressalente. E por cima o avental usual, levemente manchado e passado
a ferro com dedicação característica das mulheres afoitas.
Logo
que sentei em meu lugar de sempre, naquele boteco de sempre, vi que o tal chá mais
parecia uma água muito suja onde boiava um saquinho velho, numa tigela meio
torta e grande demais, que fazia as vezes da xícara. E açúcar, muito açúcar.
"Isso ainda vai estourar seu pâncreas, alemão diabético de uma figa",
resmungava Maria todos os dias religiosamente, a cada colherada doce que o
marido acrescentava no chá.
E o
alemão de uma figa olhava pra minha cara e ria, ria como uma criança
encapetada, e derramava bicas de suor em cima dos copos engordurados. Sabia que
aquilo tudo realmente o mataria, mas quem se importa, "vida dura como esta
já é pior que morte mesmo". E bebia o chá com uma importância que dava
gosto - "Porque é chá, que é coisa de inglês. Eu, como tenho muito calor às
cinco da tarde, prefiro tomar mesmo é agora que o sol tá baixo..." - e assim desprezava o café da mulher, que era
uma borra forte de gosto horrível naquele boteco sujo.
Eu
não me importava com a borra ou com o fedor. Todas as manhãs, estava mesmo lá
era por causa de Maria, uma mulata de ancas fartas, peitos pequenos, olhos de
jabuticaba doce e um alemão gordo, grande e vermelho a tiracolo. Seria mulher
linda, a Maria, não fosse o cenário que trazia consigo – fedido e sujo – descuidado
como seus cabelos.
Mas
eu não me importava também. Queria mesmo é estar, todos os dias, na presença de
Maria. Ela, com sua indiferença fatal a qualquer homem, sequer poderia recordar
a minha presença em algum outro dia naquele lugar. Mas eu me lembrava de cada
passo seu, e o balanço de suas ancas fartas, como que me chamando para sua cama
quente e levemente azeda. Maria da boca suja, mal educada de tão bela, Maria...
Ah,
alemão de uma figa, se eu pudesse a cada dia em que o sol ainda está baixo
colocar um pouquinho do meu amor por Maria dentro do seu chá para lhe
definhar... Mas quem sou eu na vida de minha musa, um fantasma de todos os
dias, mais um filho da puta a ver seu homem se entupir de açúcar e a rir de sua
cara. Se ao menos Adolfo explodisse logo, duro no chão, para que sua Maria me
convidasse a subir as escadas do boteco fedido, e acariciando suas ancas fartas
eu pudesse lhe consolar o amor perdido.
“Acorda
para essa vida, homem, que o trem já partiu!” – era o Adolfo que me chacoalhava
com sua gentileza de pata de elefante. Encarava-me com aquela cara vermelha e
inchada, como se meus olhos me denunciassem, desnudos. Talvez não por temer a
revelação de um amor sufocado, mas a consequência que aquilo acarretaria,
aprontei-me em retirada. Larguei os trocos, suficientes ao café, em cima do
balcão engordurado e deixei o boteco em marcha cada vez mais apressada.
Pude
ainda, como que numa agonia derradeira, sentir o olhar de Maria pregado em meu
lombo. E a respiração alvoroçada, absorvida com o alemão no meio de suas
tarefas rotineiras. Meu sangue percorreu mais uma vez – talvez a última – o
êxtase em busca de conforto na ilusão dos seios pequenos de Maria. Cada vez
mais distantes, mais ausentes. As buzinas dos carros em pressa na cidade já
desperta, junto com as figuras que por vezes esbarravam em meus pensamentos, me
fizeram desviar a mente de Maria. Isso até o dia seguinte, quando suas ancas
fartas abalariam novamente o sol ainda baixo de meus anseios.
***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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