quinta-feira, 21 de março de 2013

4

CONTAÇÃO: "Subterrâneas" - por M.Mei





SUBTERRÂNEAS


Não sei nada. Atrevo-me a acender um novo cigarro.
E o terror entra silenciosamente na minha vida.
– Herberto Helder, Os passos em volta




Talvez a loucura seja isso. Uma forma de experimentar todas as dores, e nenhuma. Uma ilusão de que o clarão que é avistado no topo consiga iluminar o fundo do poço, enquanto o que chega aos nossos olhos é apenas a ideia de luz, e não ela. Ela não chega. Nunca.
Nunca.
Posso dizer que experimentei quase todas as loucuras do mundo. Logo, quase todas as dores tantas e tantas vezes que poderia ter atingido a sanidade, fosse ela permitida a condenados como eu. Mas reconheço que a loucura me foi mais útil que qualquer tipo de razão teria sido, pois com ela conheci também a vida numa espécie de nudez indesejada. A vida desnuda é aquela que tem o cheiro azedo da insignificância, essa certeza que é como abrir um vidro de amônia perto do rosto – o ardor chega aos olhos e enfim são os olhos que alcançam a luz.
Mas de todas essas dores não há qualquer que eu possa comparar ao dia em que o sangue não mais escorreu, àquele dia em que a navalha tornou-se tão cega e a carne tornou-se tão velha que para uma ou outra não importava mais o líquido tímido – ou covarde – a percorrer em lentidão seu caminho de volta ao peito. Foi nesse dia que eu deixei de acreditar que a vida ainda pulsava em mim. O sangue? Não era a vida. A vida era mais, deveria ser mais, e nem assim ela escorreria para mostrar-se ali, colorida, a galope, quente e bela.
Outras tantas vezes eu a havia assistido brotar dos riscos secos da faca, primeiro um ponto acanhado e depois uma veia toda a esparramar-se na liberdade da pele. Por já existir dor em tudo bem antes de sê-la, o que ficava era a beleza e o alívio, o suspiro e o sentimento profundo de que ela existia. A vida. De que eu podia encontra-la em mim, principia-la e finda-la. Eu enfim a possuía, ela era minha. Mas não naquele dia.
E é por isso que acredito que desde então estou curada. Não sã, pois como já disse anteriormente a sanidade é um luxo com o qual os malditos não podem, ou não querem, arcar. Mas sei que a loucura me abandonou desde o dia em que eu não mais pude sentir a minha existência, e foi a partir deste dia que as dores de cabeça sumiram pra sempre e também desde então meus olhos não veem qualquer coisa. Sinto que estou bem. O que me incomoda mesmo é a eternidade.


***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
Para saber mais ou ler outros textos da autora, clique em aqui


4 comentários

Ander_Son

Toda vez que leio algo escrito pela Mei fico de queixo caído. Suas palavras nos envolvem, e não paramos de ler enquanto não chegamos ao ponto final da história. Parabéns.

Unknown

A dureza do conteúdo amainou a dolorosa poética, fina e expressiva

Unknown
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown

Muito, muito bom. Me lembrou Edgar Alan Poe.

Os textos tem Mariela Mei são densos, têm peso. Se fossem vendidos à kilo, ela ficaria milionária