SUBTERRÂNEAS
Não sei nada. Atrevo-me a
acender um novo cigarro.
E o terror entra silenciosamente na minha vida.
E o terror entra silenciosamente na minha vida.
– Herberto Helder, Os passos em
volta
Talvez a loucura
seja isso. Uma forma de experimentar todas as dores, e nenhuma. Uma ilusão de
que o clarão que é avistado no topo consiga iluminar o fundo do poço, enquanto
o que chega aos nossos olhos é apenas a ideia de luz, e não ela. Ela não chega.
Nunca.
Nunca.
Posso dizer que
experimentei quase todas as loucuras do mundo. Logo, quase todas as dores
tantas e tantas vezes que poderia ter atingido a sanidade, fosse ela permitida
a condenados como eu. Mas reconheço que a loucura me foi mais útil que qualquer
tipo de razão teria sido, pois com ela conheci também a vida numa espécie de
nudez indesejada. A vida desnuda é aquela que tem o cheiro azedo da
insignificância, essa certeza que é como abrir um vidro de amônia perto do
rosto – o ardor chega aos olhos e enfim são os olhos que alcançam a luz.
Mas de todas essas
dores não há qualquer que eu possa comparar ao dia em que o sangue não mais
escorreu, àquele dia em que a navalha tornou-se tão cega e a carne tornou-se
tão velha que para uma ou outra não importava mais o líquido tímido – ou
covarde – a percorrer em lentidão seu caminho de volta ao peito. Foi nesse dia
que eu deixei de acreditar que a vida ainda pulsava em mim. O sangue? Não era a
vida. A vida era mais, deveria ser mais, e nem assim ela escorreria para
mostrar-se ali, colorida, a galope, quente e bela.
Outras tantas
vezes eu a havia assistido brotar dos riscos secos da faca, primeiro um ponto
acanhado e depois uma veia toda a esparramar-se na liberdade da pele. Por já
existir dor em tudo bem antes de sê-la, o que ficava era a beleza e o alívio, o
suspiro e o sentimento profundo de que ela existia. A vida. De que eu podia
encontra-la em mim, principia-la e finda-la. Eu enfim a possuía, ela era minha.
Mas não naquele dia.
E é por isso que
acredito que desde então estou curada. Não sã, pois como já disse anteriormente
a sanidade é um luxo com o qual os malditos não podem, ou não querem, arcar.
Mas sei que a loucura me abandonou desde o dia em que eu não mais pude sentir a
minha existência, e foi a partir deste dia que as dores de cabeça sumiram pra
sempre e também desde então meus olhos não veem qualquer coisa. Sinto que estou
bem. O que me incomoda mesmo é a eternidade.
***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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4 comentários
Toda vez que leio algo escrito pela Mei fico de queixo caído. Suas palavras nos envolvem, e não paramos de ler enquanto não chegamos ao ponto final da história. Parabéns.
A dureza do conteúdo amainou a dolorosa poética, fina e expressiva
Muito, muito bom. Me lembrou Edgar Alan Poe.
Os textos tem Mariela Mei são densos, têm peso. Se fossem vendidos à kilo, ela ficaria milionária
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