domingo, 17 de março de 2013

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Pequenas histórias 50

 
 
 
 
 
 
O que ele poderia


O que ele poderia dizer quando ela jogou o cartão a sua frente, em cima da mesa do computador e, meio ríspida, até autoritária disse:
- Anote o número desse cartão.
Realmente ele não disse nada, apenas olhou para o cartão, depois para ela, respondendo:
- Está pensando que sou seu secretário?
Ela não ouviu. Ultrapassava a porta ao se dirigir para a cozinha. Ele, realmente não disse nada. Estava escrevendo, quando ela entrou na sala com o cartão. Não dera atenção a ela. Só foi notar sua presença quando o cartão encobriu seu campo de visão. Não disse nada naquele momento e também não dissera nada no dia seguinte. E deveria dizer alguma coisa? Perguntou-se pressionando as teclas. Além do que não podia desviar os olhos da tela. Não podia deixar a imaginação escapulir assim, sem mais nem menos, tudo por causa de uma merda de um cartão. Tinha urgência em terminar a crônica. Não estava saindo uma das melhores, mas era necessário terminá-la. E voltando a atenção ao que escrevia, rapidamente esqueceu cartão, ela e tudo o mais.
Concentrou-se na tela do monitor e deixou os dedos livremente percorrerem as letras do teclado. Sentia as filigranas de cada letra com o seu potencial iconográfico. Sorriu. Não conseguia entender como alguém, nesse caso esse alguém era ela, não entendia que precisava estar só com ele mesmo. Se essa amálgama não funcionasse, ele como cronista, seria um zero a esquerda do sistema, seria um Zé ninguém, um Zé mesmo com minúscula. E, ela talvez numa premeditação se interpôs entre seus pensamentos e a materialização da merda do cartão tolhendo seus olhos.
Rilhou os dentes com força. Não deixaria esse pequeno detalhe interromper o trabalho. Levantou-se, empurrou a cadeira que bateu na estante com violência provocando a queda de um livro. Numa linha reta, o grosso volume, bateu em sua cabeça, resvalou na mesa e despencou no chão com suas páginas abertas. Meio atordoado chutou o livro que deslizou pelo assoalho se acomodando no canto da sala.
Assim que os atos se acomodaram, sentiu-se perturbado e, entendeu, por não ter o que dizer sua vida naquele instante, a partir daquele instante não teria convicção de continuar. Desligou o computador. Caminhando na lentidão da tarde onde o sol se punha, deixando o céu amarelo, pegou o livro e colocou em seu devido lugar. Antes de sair, fechar a porta olhou para o horizonte que já não apresentava o amarelado e, concretizou mais uma vez a vida inútil que vivia. Fechou a porta e deixou ficar na vida que o envolvia.

27.12.07
pastorelli

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