Hoje trago para o CONTAÇÃO um conto de Herberto Helder, publicado em Os passos em volta, seu primeiro livro de prosa (1963). O poeta, que vive em Lisboa, é possivelmente um dos maiores representantes vivos da poesia portuguesa. Devido à sua vida de "não pertencimento", Helder é considerado por muitos críticos e estudiosos de sua obra como um espírito errante. Sua poesia é obscura, às vezes dissimulada, e seus versos estilhaçados podem fazer com que o leitor o abandone se não estiver disposto a se entregar, de corpo e alma, ao mundo alucinado e hermético que ele constrói Mundo ao qual pertence também sua prosa, com a diferença de que ela pode ser interpretada um pouco mais facilmente, talvez até pela organização estrutural do gênero.
Os passos em volta é um livro marcado pela solidão e pela melancolia. Uma melancolia não do desinteresse pela vida, mas do desajuste, do "não pertencimento". E é por esta razão que, como bem descreve Nelson de Oliveira, "contos como esses, longe de simplesmente entreter e deleitar, provocam e inquietam, revelando o triunfo até então invisível e silencioso da solidão de que somos constituídos (...)".
***
TEORIA
DAS CORES
(Herberto
Helder)
Era
uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente
acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir
de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e
tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia
surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O
problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a
chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe
ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos fatos e
punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo
entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e
abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao
meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua
fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava
que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da
imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida
esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
(conto do livro Os passos em volta, de Herberto Helder, publicado no Brasil pela Azougue Editorial em 2005)
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