Quando os estranhos fenômenos
começaram a se reproduzir, ou melhor, quando se renovaram nestes últimos
tempos, suscitaram antes de mais nada a dúvida. Sobre a sua realidade e mais
ainda sobre a sua causa. – Allan Kardec, O Livro dos Médiuns, Capítulo IV,
Sistemas.
Encho
o copo que foi de requeijão com água da rua. Jogo dentro o comprimido de
laranja. Ele afunda e as bolhas de gás carbônico começam a subir. Boto o copo
no parapeito da janela. O comprimido de vitamina C. A que ponto cheguei, este é
o meu último alimento.
Dos
cinco sentidos foi a visão que fez sua a arte. Comecei a ver mais cores onde
elas haviam, mais cores nas cores, menos vida onde há pouca a vida, com mais
intensidade onde há a intensidade. Àquela mudança súbita, sobrevieram os borrões
ou as manchas, incialmente na forma dos discos, depois de elipses, que passavam
lentas em minha vista. O olho direito era o sensitivo, o olho esquerdo, o
racional – como se fosse o previsto.
Mas
nunca, nunca mesmo, imaginei desenvolver este sentido sobreposto ao visual,
quando começaram a tomar conta as formas das criaturas da noite, a ditarem-me
estranhos manuscritos, a semelhança deste. Isso, por si só, esvaziava-lhes o
propósito. Ainda assim, eu a dá-los ouvido, e fazia isso a olhos vistos.
Passaram
a inferir sobre os meus pensamentos com suas ações, bem ao modo do início do
cinema, quando eram apenas sopradas as sombras às paredes, mudas. Com seus
movimentos lentos das ideias, da redução pela lambedura da pelagem, a silhueta
de um gato, na imagem de fundo, o carimbo dos infernos.
Caí
de febre, deixei o trabalho, deixei a visão de fundo tomar conta das decisões.
Como um velho aparelho televisor, o meu corpo. Sexto sentido. Nunca me achei
louco, agora já não trago comigo certezas. Não é devaneio, sou eu mais a visão
de fundo, lenta das ideias, cinco sentidos, mais um. Salto e não alcanço o alto
da geladeira. Não sou um felino.
Tomo
rápido o conteúdo do copo – anestésico; mortal – enquanto ainda tem bolhas. Eu
acredito nas bolhas associadas de alguma forma à vitamina C. Este é o meu último
alimento, antes da minha morte. Deito na cama, fecho os olhos, este é o meu
suicídio.
Noutro
dia, seguido da noite: embaralho a vista, o.cul.osa, tente de novo, oclusão, me
diz o oftalmologista. Você vai ficar bom.
1 Comentário
Salve, Jorge!
Uma visão febril do universo cotidiano.
Belo texto.
Abs
Postar um comentário