Um bar cobiçado por turistas era aquele onde eu me havia ido meter numa
noite quente incomum de um julho incomum em Paraty. Porque daquele bar eu não
sabia. E eu queria o desconhecido naquela noite. O que, aliás, não era muito
difícil. Talvez qualquer bar, não só aquele, surtisse o efeito desejado: a
vontade do novo. Eu nunca tinha ido até ali, como nunca tinha ido a lugares
como aquele desde que me havia refugiado naquela cidade entre a serra e a
praia. Eu tinha fugido do Rio pra me sentir só (acho, sem muita certeza), então
quase nunca me metia em lugares com muita gente. Mas naquela noite, eu queria o
desconhecido – que, pra mim, era a multidão –, eu queria sem saber o motivo, e
entrei naquele bar, justo naquele bar, naquele exato bar, nenhum outro. Como se
tivesse sido escrito assim. Misantropia cansa, concluí, e continuei
cantarolando, num canto sem som, Stayin’ alive, que uma juke box fazia ecoar
alto dentro daquelas paredes. Encostado ao balcão, de costas pra mesa, terminei
meu uísque. E cantava.
Achei que aquele bar tinha cara de cidade grande: escuro, as luzes
foscas, a música muito alta da juke box. Achei que era por isso que os turistas
gostavam dali, porque a eles devia soar como casa, lar, lugar seguro, o
conhecido, o confortável, tão parecido com aquele lugar de onde eles tinham
fugido num feriado ou fim de semana. Achei que era por isso que eu estava ali.
Porque eu também tinha fugido, num feriado, fim de semana ou dia qualquer. Ad
eterno...
E então, seria?, eu tinha ido àquele bar pra matar as saudades da cidade
que eu nunca chamei de minha. Como não chamava de minha aquela onde eu estava
também.
Pedi mais um uísque. Outro. Mais outro. A música se repetiu uma, outra,
mais outra e ainda outra vez. Alguém devia gostar muito dos Bee Gees naquele
lugar. Talvez por ter começado, de repente, a sentir o efeito do álcool, tenha
me dado tanta vontade de cantar alto (eu não sabia cantar, e tinha vergonha).
Ou talvez tenha me dado vontade porque era seguro cantar alto ali, onde a minha
voz seria abafada pela música alta demais. E comecei a cantar, e gostei de
sentir minha voz ser engolida pela música alta demais.
Era assim que eu estava (uísque na mão, debruçado ao balcão, cantando
alto a mesma e repetida canção, rima pobre) quando, sem motivo, quis me virar,
olhar na direção das mesas que estavam às minhas costas. Sem motivo. Eu estava
agindo por impulsos, intuições, sentimentos. E eu nunca tinha agido assim,
pensei muito rápido enquanto me virava, concluindo que eu nunca agir assim
devia ser bom. Ou mal. E que era mentira.
Mentira. Foi a última palavra em que pensei antes de me voltar por completo
às mesas do bar e meus olhos, involuntários, se fixarem num ponto que eles
pareciam ter procurado, certeiros, dardo acertando em cheio o meio do alvo,
vitória.
Sou o John Nash, meu Deus!, devaneei. E quase ri. E, sou o John Nash,
continuei devaneando, enquanto eu a olhava. Fixamente, eu a olhava. Sentada a
duas mesas de distância de mim ela estava, encostada à parede onde,
imediatamente acima da cabeça dela, um relógio antigo de ponteiros marcava
compassado o tempo que resta pro momento fatal de todos nós.
Ela, o braço pra cima segurando um copo de cerveja, parecia uma criança
segurando um balão, daqueles cheios de hélio que a gente compra nos parques e que
voam num descuido qualquer. Era assim que ela parecia, sentada ali, bem abaixo
do relógio antigo, o braço pra cima, segurando o fio invisível que a ligava ao
balão. Uma criança linda, tão linda criança, a segurar nas mãos o balão do
tempo.
Olhei fundo nos olhos dela, aquele ponto que meus olhos haviam procurado
involuntários. Olhei-a nos olhos, àquela linda criança que detinha o tempo
sobre si, passando, passando, ad eterno. Olhei-a no fundo daqueles profundos e
vivos olhos verdes sem alma, e tão tão vivos que não fazia falta a alma, ela
não precisava de alma, nem de nada mais, eu pensava muito rápido, estava
ficando bêbado (ou percebendo, compreendendo, admitindo que estava bêbado). Ela
era tão bonita, eu estava mesmo bêbado, que eu não queria mais apenas vê-la,
muito bêbado, eu queria tocá-la, bêbado mesmo, e fui até ela, porque estava
mesmo muito bêbado.
Caminhei com o copo de uísque na mão e um pensamento na cabeça: sou o
John Nash!, até aquela mesa encostada à parede, a duas mesas de distância do
balcão. Sou o John Nash, meu Deus! Porque aquela jovem tão linda à minha
frente, que dominava o tempo, e que eu queria tocar, possuir, invadir e dominar
também – eu a desejava, ela era tão linda, eu a amava em só vê-la, eu estava
bêbado –, aquela jovem tinha o rosto da minha Vitória.
Caminhei até ela naquela noite. E quis, naquela noite eu quis. Quis aquela
jovem, quis amá-la, levá-la pra casa e nunca mais deixá-la sair, mesmo com a
incômoda certeza (que eu preferia chamar de sensação, de intuição ou força) de
que eu nunca conseguiria prendê-la comigo. Como não se prende um dragão.
Caminhei até ela naquela noite. E quis não me importar com os dragões, o
calor lá fora, os turistas perdidos, as balas perdidas, as notícias do jornal,
o presente sujo, o passado morto, o futuro em branco nas mãos. Eu quis apenas
ela nas mãos, ela que carregava o tempo nas mãos. Quis imaginar, e
deliberadamente comecei a imaginar, que ela era a minha Vitória. E a amei por
isso ainda mais.
Quando parei à frente dela, a música parou também. Esperei que a
recolocassem, fosse quem fosse que havia passado a noite gastando fichas pra ouvir
os Bee Gees na juke box. Mas a música não recomeçou e aquele silêncio pesava,
entrecortado de vozes de turistas conversando, idiomas se cruzando, os
ponteiros do relógio compassados bem ao lado do meu ouvido, acima dela, tão
jovem, tão linda ela.
Ela era jovem. Ela era linda. Do alto de seus talvez quinze, ela era
linda. Os olhos verdes fitavam meu rosto em silêncio, talvez analisando cada
detalhe meu, minhas entradas na testa, meus fios brancos nascendo entre os
loiros. Quis sorrir pra ela, mas estava tão hipnotizado – por aqueles olhos
verdes fundos, aquele rosto que era de Vitória, era sim, era da minha Vitória –,
eu estava tão hipnotizado que não consegui. Apenas me ocorreu perguntar:
–Que música?
–O que eu gosto não toca na junky box – ela respondeu, alterada pelas
cervejas dispostas sobre a mesa. Carteira falsa.
–Quem sabe? Do que você gosta? – não pedi pra sentar, só sentei, bem
perto dela, de onde podia sentir seu cheio de mar, regiões abissais e verdes,
como seus olhos: fundas. Agora, ainda mais, eu quis tocá-la. E senti o corpo
estremecer, esquentar, esfriar, explodir por dentro com ela tão perto, na
cadeira ao lado, ao alcance das minhas mãos (tanto tempo, Vitória, eu me
permitia pensar, tanto tempo eu esperei te ter ao alcance das minhas mãos. Você
que sempre quis nascer pelas minhas mãos). Então quase falei: Vitória. Quase,
por tão pouco não falei: Vitória. Mas era preciso primeiro calar e deixá-la
entrar na cena, cair no meu devaneio, mergulhar na tela. Rosa Púrpura do Cairo,
Mais Estranho que a Ficção.
–Não toca na junky box – ela disse simplesmente, mas num tom hipnotizado
também. Podia ser desdém, vontade de ficar só, bebedeira or something like
that, mas naquela noite tudo era a minha ilusão. E quis imaginar que ela estava
entregue, como eu estava entregue. Quis sentir que ela estava vindo comigo,
mergulhando na cena, na tela, na minha cama, na minha vida, como eu tinha
mergulhado no seu cheio verde de mar. E, como se eu soubesse exatamente o que
fazer, ensaiado há milênios o fato, só esperando a hora certa da linha do tempo
(que ela trazia amarrada à mão), levantei, comprei uma ficha e fui até a juke
box.
Com calma, virei e revirei todas as faixas da máquina, tão antiga a
máquina. E, acreditando ter feito a escolha certa, apertei o botão. Na mesma
hora, aquela voz:
Tonight I’m gonna have
myself a real good time. I feel alive. Apropriado, pensei, e voltei pra
junto dela. Mais junto que antes agora:
–Acertei?
–Na mosca! Mais uma! – ela pediu pro garçom que passava, que me olhou
reprovando. Ela era tão jovem, afinal, eu admiti, eu podia ser seu pai, afinal,
eu admiti, e aquela era uma cidade de interior, afinal, eu admiti. Mas não liguei.
A Vitória (sim, eu pensei, Vitória) me olhou como se me quisesse. Ou como
se me estranhasse, como se me temesse. Mas naquela noite tudo era a minha
ilusão. E quis imaginar que eu tinha desvendado aquele jeito dela de olhar
fundo com seus olhos verdes fundos no negro dos meus. E, na minha ilusão, eu
desvendava que ela me queria, como eu a queria. Talvez ou certamente por isso,
sem pensar (eu já não estava mais pensando, eu estava agindo, era o álcool, era
a noite, era o Freddie na juke box, era Vitória perto, seu cheiro de mar que
não me deixavam pensar), eu a tenha beijado de surpresa. Coloquei dentro da sua
boca toda a minha língua gelada, alcoólica, úmida e misantropa. Senti o gosto
daquela jovem tão linda, tão igual à minha Vitória, que eu queria tanto que
fosse real, e deliberei que era real, que era ela, que eu a beijava, beijava
Vitória, sentia o gosto de Vitória e o gosto era bom, de água salgada, mas
doce. Um mar doce, como aquele olhar sem alma e fundo. Tão vivo o olhar. Tão
linda ela. Que eu beijei, sem alma e com força, com desejo, com impulso, aquela
boca que era de Vitória, aquele rosto que era de Vitória. Beijei Vitória e a
quis. For eternity.
E ela pareceu deixar.
Deixou que eu a puxasse dali ainda antes de a música acabar e a levasse
pela mão pelas ruas de Paraty, tropeçando nas pedras cinzentas que combinavam
com as minhas roupas negras, bêbado eu e ela bêbada também, Eu não bebi a
cerveja que eu pedi!, Eu não paguei a conta do bar!, ela dizia, Eu pago outra
depois, outra cerveja, outra conta!, eu disse, e tudo era tão morno naquele
inverno inusitado e tão quente naquele inverno incomum, e entre mim e ela era
tudo tão quente, e éramos tão incomuns, e ela era tão nova, e era tão bonita, e
eu a queria tanto e queria tanto que Vitória fosse real e eu já tinha me
permitido imaginar que ela era Vitória, e ela era real, eu a puxava pela mão,
eu tocava na mão de Vitória, tudo nela era igual à Vitória, aquela que eu
queria que saísse de mim, e tudo em volta, as casas antigas, as igrejas
centenárias, as pedras cinzentas, os turistas perdidos, a noite quente, sem
vento, as ondas reverberando ao fundo, trilha sonora, tudo enfim era por, para
e de Vitória, ela era Vitória, e tudo rodava, ela rodava, eu rodava também, eu
estava tão bêbado, ela estava também, mas eu queria mais, eu queria tudo,
queria o mundo, queria Vitória, queria que aquela menina, tão bonita a menina,
fosse Vitória, parei no mercado de sempre, onde eu comprava sempre o meu
álcool, os meus cigarros, e comprei uma garrafa de vinho e cigarros, e fomos
bebendo pela rua, no gargalo, perdoando todos os excessos, todos os olhares,
todas as reprovações, as consequências, o destino, o dia seguinte, perdoando os
erros de Deus e os nossos próprios, os nossos exageros, eu gostava dela, eu
queria acreditar que ela gostava de mim e, na minha casa, quando chegamos, eu
não fechei a porta, mas devia, eu devia ter fechado a porta pra prendê-la
comigo, mas não se prende um dragão, e eu a joguei na cama, sem pensar, eu já
não sabia, ou não conseguia ou não queria pensar, eu só sabiaconseguiaqueria
sentir e senti que tinha que ser assim, que tinha sido escrito assim, que eu
tinha que estar ali com ela naquela noite desesperada, eu tinha que ter ido
àquele bar e tinha que tê-la achado segurando o balão do tempo, e arranquei
desesperadamente, com fúria, com exagero a roupa dela, Vitória, eu pensava,
Vitória, eu estou tocando Vitória!, e eu lambi desesperadamente, com fúria, com
exagero seus seios, todo o seu corpo, todos os lugares de Vitória, eu pensava,
eu estou tocando Vitória!, todos os lugares que estiveram tanto tempo dentro de
mim, gritando pra sair, e eu queria entrar nela, na mulher que, eu pensava,
tinha saído de mim, e entrei a rasgá-la por dentro, num suspiro de prazer que
parecia não lhe causar dor, e só então eu falei, porque já tinha calado demais,
eu falei Vitória, e repeti muitas vezes, Vitória, Vitória, muito, o tempo todo,
sem saber se aquele era o nome dela, porque eu não queria que não fosse, e ela
aceitou e eu repeti mais, muito mais Vitória, mais alto, mais forte, mais
rápido, Vitória, ela não se importava, ela gostava, ela não sabia o meu nome,
ela gostava, de mim ela gostava, ela me queria, eu sabia agora, ela me queria,
e eu gritava Vitória, e ela suspirava, e ela gritava, e ela gemia, e ela
pareceu gozar junto comigo quando paramos os dois, e eu suspirava Vitória,
cansado, mais baixo, mais fraco, mais lento, bêbado eu e ela bêbada também, e
caí pro lado na cama, eu repeti Vitória, uma vez mais repeti Vitória, e, de
bebida e gozo, adormeci.
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