Não consigo, o que eu quero é muito difícil, é tocar o abstrato, torná-lo
palpável.
Márcia Barbieri
Em seu primeiro
romance Márcia Barbieri, agora num
espaço maior do que a estrutura do conto permite, tal como demonstrou com o seu: As mãos mirradas de deus (2011),
continua em seu combate com as palavras, fato este que aponta a metáfora como
injustiça e até mesmo redutor em referência ao seu trabalho. Talvez, as mesmas
palavras utilizadas pela Professora Dra. em semiótica Telma Maria Vieira para
analisar uma parte da obra da Sra. Lispector, ajudem a percorrermos o Mosaico
de Rancores com um pouco mais de clareza:
... protagonistas-narradoras, que se deparam com o fato de precisarem
narrar fazendo uso de palavras que, enquanto signos, não tem possibilidade de
expressar inteiramente o objeto. Desse modo, essas personagens experimentam um
embate com a linguagem. (pg.33)*
Aqui abandonamos
a escritora que atua na esfera de comunicação externa da obra, para nos aproximarmos
de Maria Luiza a personagem que consequentemente, é a voz que atua quase que na
íntegra ao longo da primeira parte da narrativa, intitulada como Olhos
de cão.
Malu tem como
receptor supremo de sua mensagem Lúcio, um fotógrafo com quem ela possui uma
relação tumultuada, contudo, este se encontra ausente na maior parte do tempo
em que a protagonista emite seu discurso, o que a torna numa espécie de
Alcebíades que prefere não comparecer ao Banquete,
para que assim possa imaginar situações vivenciadas por seu Sócrates (Lúcio): O almoço esfria na mesa. Não tenho fome. As
poses insinuantes daquelas putas oferecidas. (pg. 23)
A ausência do
artista funciona como um motor que impulsiona uma verborragia criadora de
imagens, diálogos com obras de diversas linguagens do mundo das artes, o que
nos faz saltar para a comunicação externa da obra, apreciando o enorme arsenal
do qual desfruta a escritora na construção de sua heroína, justificando um
estado híbrido entre o fazer poético e a arte de narrar.
A repetição de
algumas imagens que pode ser encarada por leitores mais rasos como falha de
estilo, na verdade, constituí a metalinguagem presente na obra, pois o tecer de
retalhos que Malu desenvolve com tecidos é semelhante ao procedimento linguístico
constatado em seu discurso-delírio, que recorta fatos e os mistura em
fragmentos da memória, desde a morte de uma irmã, à figura de um pai opressor,
chegando a um amante infiel e ausente e um cunhado a quem deseja e imagina ser
desejada, num ritmo de flashes curtos, nos quais trechos vão se apresentando e
reapresentando, de maneira que possa ressignificar o estado de neurose no qual
se encontra a personagem, que assim como qualquer neurótico repete, mas não em
ritmo maquinal, e sim como escreveu Moska: Repetir,
repetir até ficar diferente.
Deixando o
leitor ao final da primeira parte ao menos com uma indagação precisa: Serão
tais olhos confiáveis?
Em Clareira segunda parte da obra, ocorre uma inversão no fluxo narrativo, agora Lúcio toma
o lugar de emissor e Maria Luiza, calada é observada sem intervir no discurso
que começa brando e desmentindo muito do que fora dito ao longo da primeira
parte da obra.
O
fotógrafo, não por acaso, se apropriando dos recursos empregados em sua arte,
torna a narrativa em alguns momentos próxima ao que fazem os cronistas,
buscando o rigor do instante:
Fico o
resto do tempo sentado folheando uma revista, fingindo interesse. As pessoas
comem, arrotam e camuflam seus problemas. Sacos de salgadinho entre os vãos do
banco. (pg.153)
É possível que
muitos leitores ao encontrarem a derradeira página 168 se questionem: O que há
de real nisso tudo? Talvez esta não seja a questão, pois aqui, não há espaço
para explicações e descrições pragmáticas sobre o real, esta não é uma obra
para se ler e buscar refúgio na razão, mas sim para ser sentida
palavra-desabitada por palavra-ressignificada apontando a direção da
sensibilidade, que de tão real pode ser confundida com a técnica: A escuridão de
uma clareira.
*VIEIRA, Telma Maria, Clarice Lispector: uma leitura instigante, Annablume, São Paulo: 2004
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