quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 20



Não gostei do olhar dela. Ela não gostou de mim. Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Hoje já não lembro. Ela me secava com os olhos, me engolia, tentava sugar cada sopro. Sua arma era o rancor antigo que ela guardava de mim. Mas tínhamos acabado de nos conhecer. Ela pra mim não era nada. Eu pra ela devia ser uma velha inimiga. E por todo o tempo que passei naquele quarto de hospital, eu tive medo de levar uma surra ou um tiro. O coração do Júlio, sonoro, tilintava no marcapasso, me irritando. Enquanto a mulher dele, Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, mastigava em silêncio o seu ódio de mim. Talvez porque aquele coração ainda batesse por mim.
Ou talvez porque eu estava feia, despenteada, com a roupa ainda de ontem e amarrotada, o chinelo de sola furada e quem sabe até fedesse. Quase ri quando minha mente radiofônica resolveu executar Smely Cat, by Phoebe Buffay. But, in fact, eu não fedia e mesmo desleixada minha aparência ainda era melhor que a da Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Eu ainda era muito bonita.
Talvez ela me odiasse por isso.
No quarto branco, a pela escura do Júlio sobressaía. Meio negro, meio índio, meio árabe. O rosto de moça raspado, talvez pela mulher. O cabelo – liso, preto, ralo – penteado, talvez pela mulher. Ele parecia ter se deitado pra dormir depois de uma passagem intensiva pelo salão de beleza. Ou pelas mãos do maquiador de corpos de alguma funerária. De aparência impecável, limpo, barbeado, penteado, bem vestido e perfumado ele estava.
O Júlio.
Em coma por oito meses e nove dias. Acho que a mulher dele seria capaz de me dizer quantas horas e minutos se eu perguntasse.
Mas não perguntei.
Pensei no jovem que deixei pra trás em Paraty, que não conseguiu me descabaçar com dezesseis anos, que eu ensinei a tocar violão, que era fã do Steve Perry e só sabia tocar uma música do Journey, que me levava pra passear de lancha e me amava e me amava e me amava e tentou me impedir de ir embora quando o meu pai me jogou pra fora de casa feito saco de lixo de ontem pra triturar no caminhão dos garis. Ah, aquele jovem calmo e lento fumando por duas horas o mesmo cigarro. Queria ouvir dele a voz, saber dele as histórias e lembranças que eu não compartilhei.
Mas só ouvi batendo dele o coração.
Me irritando.
Dedicada demais ela era, eu pensei, a Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Olhei bem pra cara dela de perfil quando ela se debruçou à janela. Era loira, com uns traços finos esnobes de nobre inglesa falida, as sobrancelhas arqueadas tão altas que se ela arregalasse os olhos deviam ficar presas entre os cabelos e nunca mais voltar pro lugar. Quis rir disso, mas não era o momento nem o local. E eu sei saber hora e lugar pra ser escrota. Eu, eu sou muito hipócrita, pensei. E adorei.
Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, ficou olhando pro jardim do hospital, de olhos baixos, tristes. Má atriz. Achei que ela estava entediada e que sentia falta de sexo. Que ela queria agradar os Borges (tão ricos, com lancha, empresa e patrimônio) cuidando do filho mais novo doentinho deles. Que ela queria se sentir melhor se acreditando caridosa e cheia de bondade e altruísmo no coração. E que ela nunca tinha pensado na parte ruim do contrato, nunca tinha pensado que casamento é o depois do felizes-pra-sempre dos filmes românticos, das novelas de tevê, que ela nunca tinha cogitado viver a parte ruim do amor.
Depois quase ri da ironia (mas aquele não era o lugar nem o momento): pelo menos ela tinha conhecido a parte boa.
Tentei fazer cara de consternada. Consegui. Eu, eu sou muito falsa, pensei. E adorei. Que por dentro eu não sentia nada, nem piedade eu sentia, que dirá tristeza. Nenhuma emoção por aquele homem que tinha o pinto tão pequeno que nem me desvirginar conseguiu na juventude. Mas que me amava na juventude. Na juventude o coração dele batia por mim. Agora o coração dele batia. E me irritava.
Olhei pela janela e vi que a jovem perebenta do quarto em frente espremia suas espinhas debruçada ao peitoril. Achei aquela a cena mais bonita de toda a minha vida perdida. Quis estar debruçada à janela em frente, ao lado daquela jovem deformada por alguma enfermidade talvez contagiosa que eu não sabia qual era. Quis estar lá, onde era permitido espremer espinhas em público. Onde ser não feria. Que ali naquele quarto onde eu estava tudo era artifício e hipocrisia.
Entrecortado pelas batidas agudas do coração irritante do Júlio no marcapasso, pesou sobre nós um minuto de silêncio. Em reverência ao morto-vivo, talvez. A nossa homenagem. Ou pode ter durado cinco minutos, vinte e quatro horas. Ou mais. Pra mim, pareceu um silêncio longo e sem saída. Mesmo que não tenha sido longo, apenas sem saída. Que o tempo é o que se sente.
Quis que alguém falasse. Quis que alguém dançasse lambada. Quis que alguém tentasse se matar. Quis que alguém respirasse fundo e prendesse até o limite. Quis que alguém fizesse alguma coisa, qualquer coisa, pra acabar com aquele momento. Cheguei a amar a Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, quando ela perguntou ao Eduardo onde estava a amiga simpática dele. Cheguei a odiar o Eduardo por ter uma amiga simpática. Principalmente se fosse bonita. Principalmente se fosse mais bonita do que eu, que nem simpática sabia ser. Mas o amor passou. O ódio também. E o Eduardo respondeu assim:
–Foi comer alguma coisa na cantina do hospital. Volta logo – e a Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, começou a falar animada do quanto tinha adorado a amiga simpática do Eduardo, talvez pra me diminuir aos olhos do Eduardo, ou certamente.
E o coração do Júlio acelerou quando eu resolvi dizer, talvez pra me fazer notar pelo Eduardo, ou certamente:
–Meu Deus, como é que isso foi acontecer com o Júlio?
O tom choroso tão natural da minha voz não me surpreendeu. Eu, eu sou muito hipócrita.
Nuvens pesadas, partidas de batidas cardíacas, embaçaram os olhares, as vozes, o cenho franzido do Eduardo, igual ao da juventude, mas agora de tristeza.
–Ele caiu... – Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, falou tristemente. Má atriz.
E o Eduardo repetiu a frase como um eco triste mesmo.
Foi naquele momento que entendi que o Júlio tinha se jogado.
E que não era pra mim que eles mentiam.
Entrei no jogo pra não quebrar o ritual.
–Que acidente horrível, meu Deus.
O tom choroso tão natural da minha voz não me surpreendeu. Eu, eu sou muito hipócrita.
Enquanto o coração batia trilha-sonoramente, o Eduardo se sentou num sofá ao lado da cama. Quis querer fazer o mesmo, mas não deu tempo de saber se era mesmo isso o que eu queria. O Eduardo me chamou a sentar do lado dele, passou a mão sobre os meus ombros e começou a falar, falar, falar, enquanto acarinhava a minha pele e eu gostava.
–Ah, Vitória, Vitória... – derrotada Vitória, eu pensei e quis rir, mas soltei uma lágrima –, o Júlio mudou tanto desde que veio pra cá...
Silêncio. Pesado. Os braços do Eduardo sobre os meus ombros. Pesados. E as batidas de um coração.
–Meu irmão era tão calmo, tão lento, tocando violão todo dia de manhã, fumando aquele cigarro barato até o talo...
Silêncio. Pesado. Os braços do Eduardo sobre os meus ombros. Pesados. O peso dos anos, dos fatos, do passado sobre os nossos ombros. Paraty inteira sobre os nossos ombros. E as batidas de um coração.
–Ele sempre foi um enigma pra mim... Sempre foi muito diferente de mim...
O peso dos olhos do Eduardo dentro dos meus olhos. E as batidas de um coração.
–E sempre te amou tanto...
O peso dos olhos do Eduardo sobre os meus peitos. Ou sobre um ponto remoto qualquer do passado, da juventude, do ódio que ele tinha pelo irmão que só concordava com ele no amor que ambos tinham por mim. O peso do ódio, talvez. Da culpa pelo ódio, talvez. Cláudia, Cristina, Tamara e sei lá pesadamente me odiavam. E as batidas de um coração.
–Mas depois daquele dia...
E as batidas de um coração.
–..., quando ele te viu ir embora de Paraty, você sabe, do jeito como tudo aconteceu...
Quis dizer ironicamente: colocada pra fora de casa como saco de lixo de ontem pra triturar no caminhão dos garis só por dar pra um cara mais velho de quem já não me lembro porque eu já dei pro Rio de Janeiro em peso e o álcool etílico destruiu a minha memória. Mas não disse. Parei pra ouvir o Eduardo. E as batidas de um coração.
–..., depois daquele dia o Júlio mudou, Vitória... – derrotada Vitória, pensei e quis rir, mas soltei outra lágrima. – Ele passou a fumar demais, a beber demais, a viver demais, como se nada bastasse. Entende?
Quis dizer: entendo, Eduardo. Eu fumo demais, bebo demais, vivo demais, nada me basta. Alguém deve ter me passado adiante essa maldição. E as batidas desse coração.
–Ele veio pro Rio atrás de você, Vitória – soltei uma terceira lágrima. Aquela era nova pra mim. Senti o ódio da Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, me sufocando e soltei uma quarta lágrima. Aquela era nova pra mim. – Ele veio sem um tostão. – Olhei o Júlio, de mãos delicadas, cara de moça. Ele sempre me parecia um fotograma de cinema em preto-e-branco. – Fugiu de casa e não trouxe nada. Meu pai dizia que você ainda seria a ruína dele e que não ia fazer nada pra ajudá-lo a te encontrar. Então o Júlio fugiu. Veio ao Rio querendo te achar, mas não te achou. Foi a única coisa que ele não conseguiu na vida.
Só eu não consigo nada, Eduardo, eu quis dizer, mas fiquei calada, pra não quebrar o ritual. Pra não deixar a quinta lágrima escorrer verdadeira.
–Júlio conseguiu tudo o que quis, Vitória, – e a quinta lágrima escorreu – mas nada era o bastante. Um dia ele parou de querer.
Deve ser porque tudo sempre passa, Eduardo, eu quis dizer, e o que mais se deseja uma hora chega e é porque chega que uma hora acaba. Quem entende isso não quer querer. Porque qualquer vitória se torna perda.
Silêncio pesado. E as batidas de um coração. Tranquei nos olhos a sexta lágrima.
De um dia de sol na lancha Queen Victoria III eu me lembrei, ao som de Rock you like a hurricane. Faz-um-pedido-que-eu-atendo, eu perguntei. Júlio, eu venci o seu desafio, agora eu sei. A sexta lágrima desceu verdadeira. Quis querer morrer. Eu não sentia culpa alguma. E por não sentir culpa eu também não me culpei.
O Eduardo ainda continuou falando que o Júlio tinha largado os negócios da família, tinha jogado tudo pro alto e entrado pra Across Infinity (que porra de nome é esse!) e que depois disso a banda tinha decolado. Tive certeza de que era porque o Júlio tinha o poder de conseguir tudo que queria. Talvez conseguisse em breve deixar de viver.
A mão do Eduardo no meu ombro era o único ponto quente do meu corpo frio de ar-condicionado. O conforto do carinho parecia ainda maior por isso. Encostei a cabeça no ombro dele e me deixei ficar, chorar mais algumas lágrimas falsas com algumas verdadeiras involuntariamente misturadas. Então o Eduardo se calou por completo. As batidas de um coração, de um coração, batidas, batidas, o único som do universo naquele momento anterior ao desabar. E o Eduardo rompeu a chorar.
Me surpreendi. Ele molhava a minha testa, logo abaixo do seu queixo, e suas lágrimas desciam pelo meu queixo, como se eu chorasse também. Fiquei ali parada, mentalizando: está feito, Júlio, está feito. Eu venci o seu desafio. Está feito. Acarinhei o Eduardo o quanto pude até ele se acalmar.
Nesse momento ele me olhou fundo. Quis agora ainda mais que ele me entrasse muito fundo. Isso foi um pedido.
Feito pouco antes de Isabel entrar.

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