Não gostei do olhar dela. Ela não
gostou de mim. Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Hoje já não lembro. Ela me
secava com os olhos, me engolia, tentava sugar cada sopro. Sua arma era o rancor
antigo que ela guardava de mim. Mas tínhamos acabado de nos conhecer. Ela pra
mim não era nada. Eu pra ela devia ser uma velha inimiga. E por todo o tempo
que passei naquele quarto de hospital, eu tive medo de levar uma surra ou um
tiro. O coração do Júlio, sonoro, tilintava no marcapasso, me irritando.
Enquanto a mulher dele, Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, mastigava em
silêncio o seu ódio de mim. Talvez porque aquele coração ainda batesse por mim.
Ou talvez porque eu estava feia,
despenteada, com a roupa ainda de ontem e amarrotada, o chinelo de sola furada
e quem sabe até fedesse. Quase ri quando minha mente radiofônica resolveu executar
Smely Cat, by Phoebe Buffay. But, in fact, eu não fedia e mesmo desleixada
minha aparência ainda era melhor que a da Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Eu
ainda era muito bonita.
Talvez ela me odiasse por isso.
No quarto branco, a pela escura do
Júlio sobressaía. Meio negro, meio índio, meio árabe. O rosto de moça raspado,
talvez pela mulher. O cabelo – liso, preto, ralo – penteado, talvez pela
mulher. Ele parecia ter se deitado pra dormir depois de uma passagem intensiva
pelo salão de beleza. Ou pelas mãos do maquiador de corpos de alguma funerária.
De aparência impecável, limpo, barbeado, penteado, bem vestido e perfumado ele
estava.
O Júlio.
Em coma por oito meses e nove dias.
Acho que a mulher dele seria capaz de me dizer quantas horas e minutos se eu
perguntasse.
Mas não perguntei.
Pensei no jovem que deixei pra trás em
Paraty, que não conseguiu me descabaçar com dezesseis anos, que eu ensinei a
tocar violão, que era fã do Steve Perry e só sabia tocar uma música do Journey,
que me levava pra passear de lancha e me amava e me amava e me amava e tentou
me impedir de ir embora quando o meu pai me jogou pra fora de casa feito saco
de lixo de ontem pra triturar no caminhão dos garis. Ah, aquele jovem calmo e
lento fumando por duas horas o mesmo cigarro. Queria ouvir dele a voz, saber
dele as histórias e lembranças que eu não compartilhei.
Mas só ouvi batendo dele o coração.
Me irritando.
Dedicada demais ela era, eu pensei, a
Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá. Olhei bem pra cara dela de perfil quando ela
se debruçou à janela. Era loira, com uns traços finos esnobes de nobre inglesa
falida, as sobrancelhas arqueadas tão altas que se ela arregalasse os olhos
deviam ficar presas entre os cabelos e nunca mais voltar pro lugar. Quis rir
disso, mas não era o momento nem o local. E eu sei saber hora e lugar pra ser
escrota. Eu, eu sou muito hipócrita, pensei. E adorei.
Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá,
ficou olhando pro jardim do hospital, de olhos baixos, tristes. Má atriz. Achei
que ela estava entediada e que sentia falta de sexo. Que ela queria agradar os
Borges (tão ricos, com lancha, empresa e patrimônio) cuidando do filho mais
novo doentinho deles. Que ela queria se sentir melhor se acreditando caridosa e
cheia de bondade e altruísmo no coração. E que ela nunca tinha pensado na parte
ruim do contrato, nunca tinha pensado que casamento é o depois do felizes-pra-sempre
dos filmes românticos, das novelas de tevê, que ela nunca tinha cogitado viver
a parte ruim do amor.
Depois quase ri da ironia (mas aquele
não era o lugar nem o momento): pelo menos ela tinha conhecido a parte boa.
Tentei fazer cara de consternada.
Consegui. Eu, eu sou muito falsa, pensei. E adorei. Que por dentro eu não
sentia nada, nem piedade eu sentia, que dirá tristeza. Nenhuma emoção por
aquele homem que tinha o pinto tão pequeno que nem me desvirginar conseguiu na
juventude. Mas que me amava na juventude. Na juventude o coração dele batia por
mim. Agora o coração dele batia. E me irritava.
Olhei pela janela e vi que a jovem
perebenta do quarto em frente espremia suas espinhas debruçada ao peitoril.
Achei aquela a cena mais bonita de toda a minha vida perdida. Quis estar
debruçada à janela em frente, ao lado daquela jovem deformada por alguma
enfermidade talvez contagiosa que eu não sabia qual era. Quis estar lá, onde
era permitido espremer espinhas em público. Onde ser não feria. Que ali naquele
quarto onde eu estava tudo era artifício e hipocrisia.
Entrecortado pelas batidas agudas do
coração irritante do Júlio no marcapasso, pesou sobre nós um minuto de
silêncio. Em reverência ao morto-vivo, talvez. A nossa homenagem. Ou pode ter
durado cinco minutos, vinte e quatro horas. Ou mais. Pra mim, pareceu um
silêncio longo e sem saída. Mesmo que não tenha sido longo, apenas sem saída.
Que o tempo é o que se sente.
Quis que alguém falasse. Quis que
alguém dançasse lambada. Quis que alguém tentasse se matar. Quis que alguém
respirasse fundo e prendesse até o limite. Quis que alguém fizesse alguma
coisa, qualquer coisa, pra acabar com aquele momento. Cheguei a amar a Cláudia,
Cristina, Tamara, sei lá, quando ela perguntou ao Eduardo onde estava a amiga
simpática dele. Cheguei a odiar o Eduardo por ter uma amiga simpática.
Principalmente se fosse bonita. Principalmente se fosse mais bonita do que eu,
que nem simpática sabia ser. Mas o amor passou. O ódio também. E o Eduardo
respondeu assim:
–Foi comer alguma coisa na cantina do
hospital. Volta logo – e a Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, começou a falar
animada do quanto tinha adorado a amiga simpática do Eduardo, talvez pra me
diminuir aos olhos do Eduardo, ou certamente.
E o coração do Júlio acelerou quando
eu resolvi dizer, talvez pra me fazer notar pelo Eduardo, ou certamente:
–Meu Deus, como é que isso foi
acontecer com o Júlio?
O tom choroso tão natural da minha voz
não me surpreendeu. Eu, eu sou muito hipócrita.
Nuvens pesadas, partidas de batidas
cardíacas, embaçaram os olhares, as vozes, o cenho franzido do Eduardo, igual
ao da juventude, mas agora de tristeza.
–Ele caiu... – Cláudia, Cristina,
Tamara, sei lá, falou tristemente. Má atriz.
E o Eduardo repetiu a frase como um
eco triste mesmo.
Foi naquele momento que entendi que o
Júlio tinha se jogado.
E que não era pra mim que eles
mentiam.
Entrei no jogo pra não quebrar o
ritual.
–Que acidente horrível, meu Deus.
O tom choroso tão natural da minha voz
não me surpreendeu. Eu, eu sou muito hipócrita.
Enquanto o coração batia
trilha-sonoramente, o Eduardo se sentou num sofá ao lado da cama. Quis querer
fazer o mesmo, mas não deu tempo de saber se era mesmo isso o que eu queria. O
Eduardo me chamou a sentar do lado dele, passou a mão sobre os meus ombros e
começou a falar, falar, falar, enquanto acarinhava a minha pele e eu gostava.
–Ah, Vitória, Vitória... – derrotada
Vitória, eu pensei e quis rir, mas soltei uma lágrima –, o Júlio mudou tanto
desde que veio pra cá...
Silêncio. Pesado. Os braços do Eduardo
sobre os meus ombros. Pesados. E as batidas de um coração.
–Meu irmão era tão calmo, tão lento,
tocando violão todo dia de manhã, fumando aquele cigarro barato até o talo...
Silêncio. Pesado. Os braços do Eduardo
sobre os meus ombros. Pesados. O peso dos anos, dos fatos, do passado sobre os
nossos ombros. Paraty inteira sobre os nossos ombros. E as batidas de um
coração.
–Ele sempre foi um enigma pra mim...
Sempre foi muito diferente de mim...
O peso dos olhos do Eduardo dentro dos
meus olhos. E as batidas de um coração.
–E sempre te amou tanto...
O peso dos olhos do Eduardo sobre os
meus peitos. Ou sobre um ponto remoto qualquer do passado, da juventude, do
ódio que ele tinha pelo irmão que só concordava com ele no amor que ambos
tinham por mim. O peso do ódio, talvez. Da culpa pelo ódio, talvez. Cláudia,
Cristina, Tamara e sei lá pesadamente me odiavam. E as batidas de um coração.
–Mas depois daquele dia...
E as batidas de um coração.
–..., quando ele te viu ir embora de
Paraty, você sabe, do jeito como tudo aconteceu...
Quis dizer ironicamente: colocada pra
fora de casa como saco de lixo de ontem pra triturar no caminhão dos garis só por
dar pra um cara mais velho de quem já não me lembro porque eu já dei pro Rio de
Janeiro em peso e o álcool etílico destruiu a minha memória. Mas não disse.
Parei pra ouvir o Eduardo. E as batidas de um coração.
–..., depois daquele dia o Júlio
mudou, Vitória... – derrotada Vitória, pensei e quis rir, mas soltei outra
lágrima. – Ele passou a fumar demais, a beber demais, a viver demais, como se
nada bastasse. Entende?
Quis dizer: entendo, Eduardo. Eu fumo
demais, bebo demais, vivo demais, nada me basta. Alguém deve ter me passado
adiante essa maldição. E as batidas desse coração.
–Ele veio pro Rio atrás de você,
Vitória – soltei uma terceira lágrima. Aquela era nova pra mim. Senti o ódio da
Cláudia, Cristina, Tamara, sei lá, me sufocando e soltei uma quarta lágrima.
Aquela era nova pra mim. – Ele veio sem um tostão. – Olhei o Júlio, de mãos delicadas,
cara de moça. Ele sempre me parecia um fotograma de cinema em preto-e-branco. –
Fugiu de casa e não trouxe nada. Meu pai dizia que você ainda seria a ruína
dele e que não ia fazer nada pra ajudá-lo a te encontrar. Então o Júlio fugiu.
Veio ao Rio querendo te achar, mas não te achou. Foi a única coisa que ele não
conseguiu na vida.
Só eu não consigo nada, Eduardo, eu
quis dizer, mas fiquei calada, pra não quebrar o ritual. Pra não deixar a
quinta lágrima escorrer verdadeira.
–Júlio conseguiu tudo o que quis,
Vitória, – e a quinta lágrima escorreu – mas nada era o bastante. Um dia ele
parou de querer.
Deve ser porque tudo sempre passa,
Eduardo, eu quis dizer, e o que mais se deseja uma hora chega e é porque chega
que uma hora acaba. Quem entende isso não quer querer. Porque qualquer vitória
se torna perda.
Silêncio pesado. E as batidas de um
coração. Tranquei nos olhos a sexta lágrima.
De um dia de sol na lancha Queen
Victoria III eu me lembrei, ao som de Rock you like a hurricane.
Faz-um-pedido-que-eu-atendo, eu perguntei. Júlio, eu venci o seu desafio, agora
eu sei. A sexta lágrima desceu verdadeira. Quis querer morrer. Eu não sentia
culpa alguma. E por não sentir culpa eu também não me culpei.
O Eduardo ainda continuou falando que
o Júlio tinha largado os negócios da família, tinha jogado tudo pro alto e
entrado pra Across Infinity (que porra de nome é esse!) e que depois disso a
banda tinha decolado. Tive certeza de que era porque o Júlio tinha o poder de
conseguir tudo que queria. Talvez conseguisse em breve deixar de viver.
A mão do Eduardo no meu ombro era o
único ponto quente do meu corpo frio de ar-condicionado. O conforto do carinho
parecia ainda maior por isso. Encostei a cabeça no ombro dele e me deixei
ficar, chorar mais algumas lágrimas falsas com algumas verdadeiras
involuntariamente misturadas. Então o Eduardo se calou por completo. As batidas
de um coração, de um coração, batidas, batidas, o único som do universo naquele
momento anterior ao desabar. E o Eduardo rompeu a chorar.
Me surpreendi. Ele molhava a minha
testa, logo abaixo do seu queixo, e suas lágrimas desciam pelo meu queixo, como
se eu chorasse também. Fiquei ali parada, mentalizando: está feito, Júlio, está
feito. Eu venci o seu desafio. Está feito. Acarinhei o Eduardo o quanto pude
até ele se acalmar.
Nesse momento ele me olhou fundo. Quis
agora ainda mais que ele me entrasse muito fundo. Isso foi um pedido.
Feito pouco antes de Isabel entrar.
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