terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

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INTRODUÇÃO PARA A MORDIDA DO CORDEIRO - JANDIRA ZANCHI

 
Leopoldo Commiti, professor aposentado da Federal de Ouro Preto e poeta de grande talento, está lançando A Mordida do Cordeiro com a Editora Patuá. Transcrevo, abaixo, meu texto de introdução para a intensa beleza e profundidade desses poemas..No prefácio também consta uma análise Dirlenvalder Loyolla.

 

A MORDIDA DO CARNEIRO: INTRODUÇÃO

Deixo sumirem as palavras
pelo ralo imundo da pia
porque a piedade se foi.
Restou dela um buraco,
um esgoto sem fundo,
fossa perdida onde as emoções
tornam-se biodegradáveis,
em meio a detergentes caros
e frases cáusticas.

As palavras de Leopoldo Commiti são duras na perita  dissecação da entropia. Esse cadáver da vida desenrola-se em suas substâncias biodegradáveis, de desagradáveis cores e odores, agarrado nas  sombras que se contorcem entre espelhos e escadas, munido de seu cotidiano rígido, esvaído de poesia e piedade. Leopoldo é frio na  observação da degradação mesmo quando se surpreende de sua existência, já que  essa degradação lhe parece súbita, pois  ocorrida na vigência do fogo interior, traiçoeira praga enredada ao rio caudaloso do prazer.
“Sem incenso, sem sorte /rendemo-nos à onipotência /da carne e dos rituais mundanos” , pois, se abdicamos da beleza e da magia, o que nos resta é a aspereza de um cotidiano repulsivo. O autor não teme em se identificar com insetos – mais apropriadamente baratas - , acuados que são pela violência dos elementos, nojentos execrados pelos “limpos” habitantes das superfícies do ser. Leopoldo Commiti não desenha no espelho uma imagem agradável de si, deixa a deterioração da carne e da alma assumir seu contorno, sua sina. Veste-a como nova pele e, lúcido, mantém a alma no fogo da sua luz, ciente de que o impropério da decadência é sustentado pelos desencontros e incompetências do mundo físico.

Existem as criaturas que o dia não quis, as mariposas , os bêbados, os insones... para esses a luz não vai retornar, mesmo quando o sol voltar E no seu inventário das noites, dessas noites de cidades antigas, respingadas de vultos e de casario lúgubre, Leopoldo evoca a morte, indiferente ao fato de ser essa uma morte física ou da morte aparente da cidade velha e seus seres da noite, tentando viver quando a vida já se desfez deles, rondando em torno de lamparinas, sugando elementos condenados  :  Inconsciente, o povo /percorre as ladeiras /sedentos de uma vida /que jamais tiveram. /Apenas giram, giram /em seu giro eterno, /em torno da última /lâmpada existente /.na cidade morta”.
“Quisera ter apenas /prólogo e trama, /e que o epílogo/ se resumisse num ponto, “ nesses versos o autor faz uma síntese de seus sentimentos, caso ainda não o tenhamos compreendido bem. Resume uma sensação que é universal quando começamos a envelhecer, quando nos deparamos com situações dolorosas e/ou de difícil decisão. A de que a vida não tem um ritmo adequado, conveniente à nossa felicidade, adequado ás nossas alegrias. Porque o seu fim se finaliza em um ritual lento e desconexo, impiedoso, amarrado ao caos dos elementos.  A organização tem uma lógica e tem  no ser o seu refém quando começa a se desfazer, obrigando-o por um tempo, que se desenrola para além do insuportável,  a sentir sua própria decadência, moldando a alma em dor e aflição.
Mas a noite, essa amante da morte, faz sua visita e se vai. Leopoldo espia o sol, ainda que se sinta um pouco confuso, amarrado as lições e vivências da decomposição. Afinal o espelho lhe prometera tragédia e carnificinas e o que lhe devolve – depois de refletir com tanta mansidão a morte – é o gelo , o frio de uma moldura, a vida morna de paixões baratas que só imitam um ardor de juventude, de explosão. O autor nos surpreende com essa requintada percepção  da corrupção interna e externa que a má distribuição do tempo faz. Vivemos, sim, essa vida indolor e contínua, sabedora das formas e fases das relações e dos elementos, já que nem vivos, nem mortos, arrastamos nossas asas queimadas pelas lamparinas de pouca luz:
Anos antes ficara pronto. Pronto, prematuro e velho,
segregado de olhares, renegado. Agora se surpreende
presente na cena de um fútil e lento crime silencioso
A tragédia da tragédia é que a vida se esquece da elegância e  Abraçado a si mesmo, como sangue coagulado, /o dia dorme. Sem qualquer despertar sutil /ou arranco de dor da inexorável vinda das horas, /de mais horas, novas ou antigas; enfadado. “  Sim, a noite pode se despedir, mas, o dia por sua vez, dorme. E não aquece. Então Leopoldo vive entre o dia e a noite, a noite e o dia, procurando uma cisão e, poeta excepcional que é, descobre o fogo lento da maturidade:” Talhei a casa /como quem confecciona /um terno, /nos detalhes doloridos /de cada ponto. /Em pontas de agulha, /decepando o tecido /excessivo que a escondia, /com tesouradas cruas, /talhei-a. /Vesti-a. /E a exponho em gala /no jantar da maturidade. “
E o rio renasce, irrompe e “Finalmente se abre a janela e dela sai um espectro claro. “. Os últimos poemas negam e reafirmam esse novo patamar, afinal, a mordida do carneiro é mais branda do que a do lobo, pois, esse, conhecemos, nos instruímos, preparamo-nos para a sua eterna caça, seu voraz desejo a nos cortejar.  Para a mordida do carneiro não fomos preparados, acreditávamos que se vestíssemos sua pele macia nosso coração voaria, não esperávamos a vestimenta espessa de pelos endurecidos  a nos enrijecer, transmutando o dia em noite vermelha, depois gélida e amarga, prolongando seu epílogo para além da razão humana:
 Anjos! Eis os Demônios,
no avesso dos tempos anônimos
e na pele que sempre muda.

Jandira Zanchi é poeta, autora, entre outros, de A Janela dos Ventos (Emooby  -  2012) e Gume de Gueixa (Patuá – 2013)



Livro: A mordida do cordeiro
Autor: Leopoldo Comitti

Gênero: Poesia

Número de Páginas: 120

Formato: 14x21

Preço: R$ 30,00 + frete (Livro em pré-venda. Entrega após o lançamento, em março.)
www.editorapatua.com.br

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