Palavras-chave: literatura,
poesia, conto
- Introdução
“Muita vez eu caminho feliz e despreocupado
pelas veredas asfálticas que compõem o teatro das grandes cidades.”
O relógio
cravava sete horas de um dia da semana. A única preocupação que habitava a
mente de Francisco é a de que ele estava atrasado para o trabalho. Precisava
tomar ainda mais um coletivo, coisa que não o incomodava, em absoluto. Exceto
nesta situação específica, quando já dava por certo o comentário mordaz do
chefe intransigente que o aguardava na repartição para o descarrego dissimulado
de suas desilusões pessoais.
Observava com
atenção e respeito às figuras postadas no mesmo ônibus. O meio de transporte
super-lotado era rico em significados e simbolismos da natureza humana.
Francisco considerava-se, a seu modo, espécie de catedrático no assunto – não
tanto devido à formação intelectual, mas sobretudo pela experiência singular ao
longo da trajetória de sua própria vida. Sempre haverá o velho com seu
semblante murcho pela ação ininterrupta e degradante do tempo; cabeça levemente
tombada para a direita; recostada na janela. O bebê que berra alto do colo da
mãe a lhe sacolejar. Desde cedo já tem nítida a noção de que se encontra num
veículo popular; que as roupas esfarrapadas e úmidas de líquidos dejetos não
dão conta de impedir a perda de calor de seu frágil corpo; enfim, que sua
triste sina já está tecida às tramas do destino: ele será pobre e desprovido de
oportunidades como os seus pais. Outro cara que se agarra com todas as suas
forças num senso de identidade às esferas maiores da sociedade – um time de
futebol, uma religião, um partido político, a compaixão por esta ou aquela
tragédia presente no cardápio dos noticiários do dia, ou mesmo o logotipo na
manga da camisa que lhe serve de vestimenta. O ônibus faz uma curva brusca à
esquerda. Francisco se segura como pode no corrimão. A cabeça do velho tomba e
ele desperta de um estado letárgico. Alguns adolescentes vestidos de preto e
com mochilas pichadas nas costas bradam ao motorista: filho da puta!
- Estado da Arte
“Agradeço ao bom deus as suas dádivas e as
chances de progressão na carreira.”
Logo ao adentrar
o recinto do escritório, Francisco se apercebeu de uma atmosfera mais leve e
diferenciada do ambiente, que (na cabeça dele) era indício de boas novas! O
chefe não o submeteu ao interrogatório de costume e o poupou de qualquer outra
variante do constrangimento. Há tempos sua conduta vinha sendo experimentada às
mais diversas facetas do relacionamento humano; suas múltiplas atividades e
habilidades o qualificavam perante o competente foro de recursos humanos como
emergente potencial do desenvolvimento “L”. Francisco guardava para si, mas
reconhecia (humildemente) sua fabulosa capacidade. Esperava ansioso o dia do
merecido reconhecimento, e a bem-vinda promoção.
Era por volta
das nove horas da manhã quando o superior o chamou para um bate papo amigável
na sua saleta. Francisco observou a decoração sóbria, com tons quiçá soturnos,
e ponderou sobre como a responsabilidade, em determinado grau, interfere na
conduta e na postura humana. Pensou se, de fato, deveria ceder à tentação da
ascensão hierárquica; avaliou os diferentes aspectos envolvidos (positivos e
negativos): as implicações no relacionamento com os seus colegas de trabalho,
com os amigos do futebol de sábado de manhã, e por fim (mas não em menor grau
de importância) os impactos na família. Mas o chefe lhe apresentou uma longa
lista de argumentos irrefutáveis, embasados por fatos e dados; estatísticas;
desenhou um futuro brilhante em sua mente quando disse: Cara, você é “L”, tenho
certeza disso! Fazer o quê? Com tanta novidade em sua vida, Francisco se viu
envolto por um afluxo de esperanças como nunca antes houvera resplandecido de
sua existência reles.
- Materiais e Métodos
“As novas experiências e as novas amizades
são revigorantes para a elevação do espírito; imperativo para que este não se
revista às so(m)bras do quotidiano.”
À saída do
escritório o superior o apresentou a dois homens de ar austero que estavam
incumbidos de levá-lo ao seu novo posto de trabalho, noutra unidade da
corporação. Eles seguiram os três numa condução bem mais adequada aos serviços
e providências desta natureza. Era muito melhor que o transporte coletivo –
ponderou Francisco. Os dois homens eram econômicos nas palavras, como exigiam
os papéis que lhes foram atribuídos. Eram, a seu modo, cicerones a lhe
apresentar as novas instalações, o seu novo escritório, as ferramentas de
trabalho, o modus operandi e os seus
colegas.
- Desenvolvimento
O seu relógio
marcava exatas onze horas da manhã. Francisco havia sido exposto a uma
avalanche de informações e sentimentos naquela mesma manhã. Um terceiro colega
da nova repartição saudou-lhe com as boas-vindas de praxe. Este, bem menos
sisudo que os outros dois, se permitia um sorriso discreto que seria capaz de
dissolver as mais graves contendas. Trocaram as frases básicas das pessoas que
se iniciam mutuamente em atividade simbiótica. Ele lhe ofereceu a dose de um
aperitivo que Francisco sorveu sem fazer cerimônia. Apesar das notas doces,
pôde se aperceber de uma reminiscência acre. Francisco, a despeito de sua
humilde ascendência, tinha desenvolvido um paladar refinado. Seus sentidos se
expandiram; este pediu então para ser deixado a sós em seu cubículo, por um
breve instante. Era chegado o momento de repousar, organizar as idéias, tomar o
feitio do tempo a seu favor.
Eram treze horas
quando veio um funcionário lhe chamar: o almoço seria servido. Francisco
ocupava-se então de complexas atividades subjetivas que exigiam de exímia
capacidade da concentração. Seguiram ambos os homens para o refeitório, que se
situava próximo ao centro de um conjunto de edificações. Para o traslado, de um
prédio a outro, caminharam através de trilhas por um jardim muito bem cuidado,
arborizado, com um pequeno chafariz ao centro. Francisco observou que o líquido
fluía de um pequeno orifício localizado à extremidade superior de uma pedra
elíptica, a qual tinha a sua altura ligeiramente maior que o diâmetro
transversal; a água límpida escorria sobre toda a superfície lisa da pedra
(ligeiramente esverdeada pelo acúmulo de líquen); depois vinha a se acumular
numa espécie de grande tigela cerâmica; fazia alusão a certo tipo de estrutura
denominada lingam, que no hinduísmo é
símbolo de adoração da divindade shiva
e os seus vários desdobramentos. Havia ainda muitos bancos, semelhantes a estes
das praças públicas, onde alguns se refestelavam ao sol, noutros destes bancos
as pessoas se envolviam em discussões interessantíssimas. Aparentemente aquele
ambiente era propício às digressões intelectuais, aos exercícios da oratória,
enfim, ao constante fluxo de elevadas idéias.
Após uma
refeição frugal (é fato que, à primeira vista, Francisco julgou as porções da
mistura um tanto quanto restritivas, tendo por base o padrão alimentar ao qual
ele era experimentado; mas fica aqui o registro de que, com o passar dos dias,
das semanas, dos meses, ele se adaptou bem), Francisco retornou para o espaço
de conferências a céu aberto – visto que à tarde de outono era favorável a
estas e outras práticas.
- Resultados
“Imagine sua vida como um filme que será
repetido infinitamente pela eternidade afora (algo como aquilo dito por Jim
Morrison numa de suas performances ao vivo à frente da banda estadunidense The
Doors). É bom se assegurar de que bons eventos estejam nela contidos; para a
validade da experiência.”
Assim se deram
as coisas e Francisco terminou por consolidar laços de frutífera amizade com
muitos de seus companheiros. O quotidiano é catalisador dessas relações
interpessoais. Aparam-se as arestas. Faz do homem (ou da mulher, que seja) um
ser humano melhor a cada dia. Contamos uns com os outros. E a vida segue
adiante, devorando os vivos. As bactérias consomem a matéria orgânica, física,
palpável. Mas restam as idéias, as realizações, estes laços são de fato mais
duradouros – alguns dizem até eternos, mas não me ouso a tanto. Verdade é que o
cadáver de hoje amanhã será húmus, posterior alimento aos vegetais, que se
emaranham em complexa cadeia do ciclo alimentar entre as espécies. E quem
garante que você não almoçou hoje Napoleão Bonaparte (ou Marylin Monroe)? Se
for Adolf Hitler, cuspa!
Antonio era o
amigo gago que fazia às vezes de um mudo. Tinha vergonha de sua triste condição
re-re-re-repetitiva. Se alguém que não fazia parte do círculo dos iniciados em
“L” lhe perguntava alguma coisa, certamente ele não ousaria responder. E neste
caso, se por ventura a imaginação do interlocutor o levasse a pensar que
Antonio era surdo, este se zangava profundamente. E era fim de discussão.
Apesar de tudo, Antonio era boa pessoa, tinha um bom coração e era querido por
todos. Expressava-se à sua maneira, através dos gestos ou magníficos
pictogramas, posto que não fora letrado.
Dizem que
Jacinto fora um dia escritor de exímio talento e reconhecido no meio literário,
guardadas as devidas proporções. Um futuro promissor desenhara-se frente aos
seus olhos. Mas reza a lenda que certa indisposição ocorrida há anos atrás com
uma colega politicamente influente acabou por levar sua reputação à lona.
Tratava-se do tal “incidente do laticínio putrefato”, o qual ninguém sabia
exatamente as causas. Era como uma dessas estórias sobre as quais se conhece
apenas um único lado da moeda (ou a face negra da lua). Jacinto recusava-se
terminantemente a discutir o assunto – que Jorge achava relevante para o seu
amadurecimento – entretanto entre aqueles círculos dos iniciados na “L” ele
fazia às vezes de um bom orador, e era bem-quisto contador de causos. Apesar da
atração irresistível pelo álcool e às drogas.
Natália estava
sempre ao piano. Tinha certa predileção por este instrumento musical, embora
fosse proficiente em vários outros deles, incluindo aqueles de sopro e de
corda. Noutros tempos fora uma carreirista de orquestra mundialmente afamada.
Era reconhecida pela técnica apurada, embora recebesse retornos negativos dos
críticos com relação às limitações do sentimento que provinham de sua arte. Ao
longo dos anos Natália foi aprimorando gradualmente suas habilidades como
música experimentalista – elevada a um patamar do conceito
inovador-progressista. Era capaz de performances de mais de cinco horas,
tocando apenas com os dedos dos pés as obras mais complexas de Wolfgang Amadeus
Mozart ou mesmo as de Sergei Vasilievich Rachmaninoff. Atualmente dava
preferência ao seu círculo de amigos e apreciadores “L” aos quais ela
presenteava com solos longuíssimos – verdadeira virtuose – como os discursos do
saudoso Fidel Castro (que deus o tenha).
O trabalho deles
era basicamente intelectual e imperava a máxima do livre arbítrio. Todos eram
tratados com a merecida dignidade dos afortunados pela “L”. Considerados
responsáveis por seus atos, escolhiam o número de horas diárias de dedicação
aos desenvolvimentos e tinham plena liberdade de se aprofundarem neste ou
naquele projeto – o que julgassem mais promissor e relevante, dentro de certo
contexto.
O complexo de
prédios abrigava pouco mais de duas centenas de colaboradores “L” e
aproximadamente uma centena de outros, que era responsável pela manutenção das
instalações, garantia das condições mínimas para os trabalhos, a alimentação e
a gestão de tudo aquilo que fosse produzido ali. Francisco queixava-se apenas
da jornada puxada, visto que todos eles eram mantidos internos, com as visitas
apenas dois finais de semana ao longo do mês. Não era coisa pra qualquer um!
Jorge era uma
espécie de mentor intelectual dos “L”. Aparecia umas três ou quatro vezes por
mês, nunca no mesmo dia da semana, porque era sabidamente um homem ocupado.
Passava boa parte do tempo em Brasília, resolvendo complexas questões da “L” no
âmbito nacional. Mas sempre que estava por aparecer por lá, a notícia logo se
espalhava. Os saguões eram limpos e aos companheiros era recomendado botarem as
suas melhores roupas. A refeição seria, certamente, a mais farta da semana.
Jorge apreciava passear livremente pelos jardins e acompanhar pessoalmente a
evolução dos trabalhos. Vez por outra, chamava algum dos especialistas na “L”
para um bate papo mais informal, no seu amplo escritório.
- Conclusão
“Aqui eu me entendo com as pessoas. Noutro
tempo eu era dado às bravatas e às intransigências. Enfim, não me adaptava
aquela ordem de coisas.”
Via de regra,
Francisco sentia-se feliz e realizado no sanatório. Para ele a “L”oucura não
passava de outra forma de percepção da realidade. Ele se dava bem com os outros
“L”oucos.
Referência:
[1] Xerxes, J., O Fator “L”, http://jorgexerxes.wordpress.com/
, (2009)
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