Noite passada eu sonhei que era
Você e decidi descrever a experiência.
A primeira imagem que me veio à mente
foi a de um menino nu preso por um cadeado de bicicleta ao poste numa esquina
qualquer do Rio. Calor, muito calor e humilhação. Depois, para refrescar,
árvore à frente, a terceira vértebra quebrada numa descida rápida de esqui nos
Jogos de Inverno em Sochi.
Se o sinal se fecha, é porque
existe o cruzamento de vias a frente. Dualismo, observador e observado, sujeito
e objeto. Quando o sinal ficou vermelho para mim? Quando o sinal ficou verde
para Você? Será possível definirmos com precisão estes limites se nossos
veículos têm velocidades diferentes? Isso vai dar merda; alguém bota a língua
de fora. Relatividade. Saco o meu facão e corto o seu pescoço. Afinal, eu estou
com a razão. Sua mulher chora; ouço-a entre soluços: “Discutir no trânsito não
vale a pena”. Como é louco o universo onírico. Outra quebra.
Descontinuidade. Ciência,
tecnologia, economia de escala. Muita informação e pouco conteúdo. Eu tenho de
me desdobrar cada vez mais para sustentar o mercado. Cartão de crédito, i-pad,
fast food, x-box, rodo anel, tv de plasma e banda larga: tudo isso para a minha
comodidade. Por mais que eu trabalhe, me esforce, ninguém explica os porquês ou
pra onde é que estamos indo. Por quê?
Mais um fragmento. Os três poderes
vergonhosamente a se digladiarem no horário nobre; uma espécie de big brother às
avessas. Eu assisto em tempo real a um desfile de mazelas elevadas às altas
esferas da aristocracia. Espalham luxúria, ira, orgulho e inveja por todos os
lados.
Pausa para a reflexão. Para o meu
alívio ainda posso tomar umas cervejas depois do trabalho. Neste sonho existe ainda
a realidade ampliada, os jogos eletrônicos e os ambientes virtuais. Eu posso ser
outra pessoa – herói, vilão ou magnata. Três salves para Bill Gates, Steve Jobs
e Mark Zuckerberg! Eles deram asas a minha absoluta incapacidade de imaginação.
(Sonho dentro do sonho).
E foguete nas costas do cinegrafista
é diversão. Preocupação com a minha segurança: o que será do Brasil se perder a
copa? Por isso, créditos ilimitados à Fifa e amplos poderes ao Felipão.
Eu concordo com Você quanto ao
desejo de potência de Nietzsche. Isso explica também a minha aspiração à
Ubermensch. E este louco devaneio avaliza todo o espectro de possibilidades da
conduta humana – para além do bem e do mal.
Mas eis que eu me deparo com o
Fuhrer, que eu julgava morto. Ele aplaude qual Charles Chaplin, ovacionando as
passadas velozes e saltos amplos de Jesse Owens. Quero crer que não estou
sonhando, belisco o meu antebraço esquerdo com a mão direita. Sim, estou bem
desperto!
Pergunto ao colega sentado do meu
lado no estádio o que é que está se passando? Um Telê Santana sorridente me
responde que é isso mesmo; a seleção de 82 é aquela dos sonhos, apesar da falta
de um matador, pelo seu futebol arte desde que o sentido de sucesso fora
expatriado ao âmbito transpessoal.
– Você não assistiu àquela entrevista do Jô
com o cara magrelo, de bigode, narigudo, vestido somente de tanga e estranhos
óculos de armação circular? Fiquei pasmo de que, com tantos recursos, eu
andasse por aí tão desinformado. Além do mais, esse cara devia ser feio para
caralho.
– Sim, foi ele quem difundiu esse sonho de persistência
na verdade. Ele também denominava aquelas suas ideias de força do amor ou força
da alma. O magrelo era convicto de que na busca pela verdade não era admitida a
violência sobre o oponente, mas que este devia ser demovido do erro pela
paciência e pela compaixão. Porque inicialmente aquilo que parece ser a verdade
para um pode parecer o erro para outro. E a paciência é um exercício de
auto-depuração. Então essa conduta veio re-significar o clamor pela verdade através,
não da imposição de depuração ao outro, mas a si mesmo.
– Você se lembra de quanto o Gordo gritava:
“Bota ponta, Telê?” É mais ou menos isso.
Aquilo me soou familiar e esbocei
um sorriso. À sensação de compreensão súbita sobreveio o desmoronamento do dualismo.
Fusão do sujeito com o objeto, cessação da diferenciação entre acima e abaixo,
uma confusão danada das ideias, por fim, o colapso da alma no corpo.
Despertei estupefato sem entender
picas.
Noite passada eu sonhei que era
Você, mas desisti de descrever a experiência.
Será que vamos nos entender um
dia?
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