segunda-feira, 17 de março de 2014

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Bêbado no frio



Era inverno e frio. Abriu a porta e o peito e partiu. A rua. Não queria o aconchego do sofá e do fogo. O fogo estava. Dentro. No peito. Fúria de fugir pro mundo. Devorar o mundo e a possibilidade de qualquer impossível. O frio era a barreira. Todas elas no frio. O limite do corpo. A frustração do corpo. Corpo petrificado. Encolhido. Corpo assustado e intimidado. Corpo hibernado. Não. Não pretendia hibernar. Tinha que viver esse mundo frio. Quebrar o gelo. Deslizar. Abriu um buraco nele. Afirmar uma atitude de vida que não fosse aquela. De morte.
E enquanto todos os corpos aqueciam-se tranqüilos em cobertores, lareiras e aquecedores, humanos ou elétricos. O dele. Corpo rebelde e louco da porta se pôs a caminhar. Afastar-se da casa. A casa do corpo. O dele. Não podia ter casa. A casa era a vida. A experiência. A loucura do momento. A estupidez, inclusive, de gelar no frio. Gelaria. Congelaria até a medula. Não importava a consequência. Mas sim a vontade, o desejo de se jogar, de enfrentar o frio. No osso. Na carne. O nariz  vermelho. Pés doendo. E um sorriso. O frio dizia não. Mas o corpo não ouvia mais. Só o desejo de enfrentar todo e qualquer frio. Todo e qualquer discurso repleto de gelo e medo. Era revolucionário? Não, claro que não. Era poeta. Pobre. Bêbado. Era feliz? O que era felicidade? E o que era infelicidade? Ele era. E ponto.
O bar. O bar era seu não-lugar, pois não era casa. Era a rua. O trajeto. O álcool na garganta e o frio. Cabelos molhados. A grande tosse. A solidão do corpo no frio de qualquer palavra. E então se fazia o milagre. Ou o circo. Ou o teatro. Tragicômica performance de vida e dor e ridículo e palavra e som... e algumas lágrimas alcoólicas.
Da boca petrificada, cuspia verbos e palavras afiadas. Declamava o fogo de suas entranhas. Declamava em braços e pernas e trejeitos todos a história das palavras sem dono, das palavras assassinas e prostitutas. Palavras marginais. E em gritos alarmava os olhos das casas que se acendiam na noite fria.
Os cachorros latiam. Uivavam para as palavras dele. E o gelo era fogo. E o calor inundava a vida gelada. E as palavras todas aqueciam o corpo gelado, cobriam-no. Acalentavam-no. E ele desmaiava. Em êxtase.
Logo a polícia chegava. Recolhiam o corpo de palavras inexatas. Letra por letra. Rebocavam para a casa ainda aberta. Na cama os versos bêbados jaziam. Soluçavam, ainda, palavras desconexas que escorriam pelo canto da boca.
E logo o dia vinha.

Mas ele não era do dia. Era apenas uma metáfora noturna.

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