Era noite fechada. A floresta escura
contrastava com a luz das estrelas, que piscavam como diamantes. A lua cheia fazia
clarões em alguns pontos da mata e um ouvido mais atento podia distinguir os
sons produzidos pela coruja, pelos sapos, feras, macacos e grilos. O ruído das
folhas podia ser resultado da ação do vento, mas também de algum animal
selvagem, ou ainda de uma serpente venenosa, pronta para dar o bote... até
mesmo de um inimigo, de alguma tribo rival.
Todo o cuidado era pouco para transitar
pela floresta depois do entardecer. Mesmo para um índio experiente como Kaloré,
que na linguagem dos caingangues quer dizer “campo das árvores pintadas”, tinha
de ficar esperto. Não por acaso, transitar pela mata era uma das atividades
mais prazerosas de sua vida. Nem se importava com os perigos. “Viver é correr
riscos”, dizia.
Enquanto o vento de outono soprava e
agitava as folhas, uma coruja se mantinha imóvel, porém vigilante, na parte
mais alta de uma embaúva. Seus olhos
grandes e atentos não perdiam nenhum lance. O piar da coruja sempre o ajudava a
ficar acordado...
O cachorro-do-mato, a jaguatirica, o
tatu, a onça pintada, a capivara, os roedores e os insetos... Todos eram os
donos absolutos do pedaço. E mesmo nascido na aldeia, tinha aprendido desde
pequeno a respeitar os seres da floresta, a preservar as matas e os rios.
Enquanto fazia sua caminhada pela
trilha que o reconduziria à aldeia caingangue, Kaloré inalava o cheiro da relva
fresca, da terra úmida. O aroma exalado pela terra o fazia lembrar que aquele
era o lugar onde seu povo tira o seu sustento e é feliz! Para defender a terra,
ele seria capaz de sacrificar a própria vida, se fosse preciso!
E de repente, num piscar de olhos,
Kaloré teve uma visão: viu três grandes barcos estranhos, vindos em direção à
margem do rio. De dentro de um dos barcos, um homem sorridente desce e tenta se
comunicar. A abordagem foi amistosa, mas algo dentro dele o fez temer aquela
visita. O índio sentiu que a partir daquele momento, tudo iria mudar. Viu
sangue, morte e lágrimas... aldeias incendiadas, mulheres e crianças
desamparadas, fome... Sentiu o coração apertado.
- O que posso fazer pelo meu povo?,
perguntou para si mesmo, mas não obteve resposta.
O despertador do celular toca. Só aí o homem cai em si e constata que tudo
não passou de um sonho, de uma volta à época do Descobrimento do Brasil,
oficialmente comemorado no dia 22 de abril, há 514 anos!
- Essa mania de ficar preparando a aula
de História até tarde para a turma da manhã dá nisso! Até que me saí bem no sonho,
como um índio que previu a chegada dos portugueses... Quem diria, hein,
professor Aristides?
Ao entrar na sala de aula e encontrar
os alunos, Aristides lembrou do sonho e sorriu, deixando os estudantes
intrigados...
Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e radicada em Jaraguá do Sul (SC) desde 1996.
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