quarta-feira, 23 de abril de 2014

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A VISÃO DO CAINGANGUE - SÔNIA PILLON

Era noite fechada. A floresta escura contrastava com a luz das estrelas, que piscavam como diamantes. A lua cheia fazia clarões em alguns pontos da mata e um ouvido mais atento podia distinguir os sons produzidos pela coruja, pelos sapos, feras, macacos e grilos. O ruído das folhas podia ser resultado da ação do vento, mas também de algum animal selvagem, ou ainda de uma serpente venenosa, pronta para dar o bote... até mesmo de um inimigo, de alguma tribo rival.

Todo o cuidado era pouco para transitar pela floresta depois do entardecer. Mesmo para um índio experiente como Kaloré, que na linguagem dos caingangues quer dizer “campo das árvores pintadas”, tinha de ficar esperto. Não por acaso, transitar pela mata era uma das atividades mais prazerosas de sua vida. Nem se importava com os perigos. “Viver é correr riscos”, dizia.

Enquanto o vento de outono soprava e agitava as folhas, uma coruja se mantinha imóvel, porém vigilante, na parte mais alta de uma embaúva.  Seus olhos grandes e atentos não perdiam nenhum lance. O piar da coruja sempre o ajudava a ficar acordado...

O cachorro-do-mato, a jaguatirica, o tatu, a onça pintada, a capivara, os roedores e os insetos... Todos eram os donos absolutos do pedaço. E mesmo nascido na aldeia, tinha aprendido desde pequeno a respeitar os seres da floresta, a preservar as matas e os rios.

Enquanto fazia sua caminhada pela trilha que o reconduziria à aldeia caingangue, Kaloré inalava o cheiro da relva fresca, da terra úmida. O aroma exalado pela terra o fazia lembrar que aquele era o lugar onde seu povo tira o seu sustento e é feliz! Para defender a terra, ele seria capaz de sacrificar a própria vida, se fosse preciso!

E de repente, num piscar de olhos, Kaloré teve uma visão: viu três grandes barcos estranhos, vindos em direção à margem do rio. De dentro de um dos barcos, um homem sorridente desce e tenta se comunicar. A abordagem foi amistosa, mas algo dentro dele o fez temer aquela visita. O índio sentiu que a partir daquele momento, tudo iria mudar. Viu sangue, morte e lágrimas... aldeias incendiadas, mulheres e crianças desamparadas, fome... Sentiu o coração apertado.
- O que posso fazer pelo meu povo?, perguntou para si mesmo, mas não obteve resposta.

O despertador do celular toca.  Só aí o homem cai em si e constata que tudo não passou de um sonho, de uma volta à época do Descobrimento do Brasil, oficialmente comemorado no dia 22 de abril, há 514 anos!

- Essa mania de ficar preparando a aula de História até tarde para a turma da manhã dá nisso! Até que me saí bem no sonho, como um índio que previu a chegada dos portugueses... Quem diria, hein, professor Aristides?

Ao entrar na sala de aula e encontrar os alunos, Aristides lembrou do sonho e sorriu, deixando os estudantes intrigados...

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e radicada em Jaraguá do Sul (SC) desde 1996.




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