Ver
o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é
capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o
ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo
também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama
o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para
não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado.
Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é
óbvio.
* * *
A
galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A
que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa
iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A
que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa,
sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao
carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que
pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se
distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é
apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera
tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um
si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem
trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a
palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se
elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se
faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
* * *
Pego
mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante
exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma
ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte
da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo.
Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes
disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos
reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos
reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce:
embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também
não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco
mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais.
E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o
amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é
finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se
pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é
prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele,
corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa;
ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se
não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
* * *
Os
ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem
nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas,
arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e
rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós
somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver
faz rir.
E
me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e
não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e
aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego
que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso
emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como
diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse
dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei
ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária
modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que
no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres
ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha
simplicidade.
* * *
Quatro
excertos do conto O Ovo e a Galinha de Clarice Lispector são apresentados
acima.
Assisti
recentemente a única entrevista televisionada de Clarice Lispector, concedida
em fevereiro de 1977, ao repórter Júlio Lerner para a TV Cultura de São Paulo –
logo após a finalização da escritura de seu romance A Hora da Estrela.
Nesta
entrevista Ela nos diz que este conto, O Ovo e a Galinha, é o seu predileto.
Achei
irresistível a comparação com a psicologia de Jung. Pareceu-me (óbvio como o
ovo) se tratar de chave poética para a razão do existir. Abaixo segue um texto breve
descrevendo o arquétipo da quaternidade.
* * *
Quaternity:
An image with a four-fold structure, usually square or circular and
symmetrical; psychologically, it points to the idea of wholeness.
The
quaternity is one of the most widespread archetypes and has also proved to be
one of the most useful schemata for representing the arrangement of the
functions by which the conscious mind takes its bearings. [See typology.] It is
like the crossed threads in the telescope of our understanding. The cross
formed by the points of the quaternity is no less universal and has in addition
the highest possible moral and religious significance for Western man. Similarly
the circle, as the symbol of completeness and perfect being, is a widespread
expression for heaven, sun, and God; it also expresses the primordial image of
man and the soul. ["The Psychology of the Transference," CW 16, par.
405.]
From
the circle and quaternity motif is derived the symbol of the geometrically
formed crystal and the wonder-working stone. From here analogy formation leads
on to the city, castle, church, house, and vessel. Another variant is the wheel
(rota). The former motif emphasizes the ego’s containment in the greater
dimension of the self; the latter emphasizes the rotation which also appears as
a ritual circumambulation. Psychologically, it denotes concentration on and
preoccupation with a centre. ["The Structure and Dynamics of the
Self," CW 9ii, par. 352.]
Jung
believed that the spontaneous production of quaternary images (including
mandalas), whether consciously or in dreams and fantasies, can indicate the
ego’s capacity to assimilate unconscious material. But they may also be
essentially apotropaic, an attempt by the psyche to prevent itself from
disintegrating.
These
images are naturally only anticipations of a wholeness which is, in principle,
always just beyond our reach. Also, they do not invariably indicate a subliminal
readiness on the part of the patient to realize that wholeness consciously, at
a later stage; often they mean no more than a temporary compensation of chaotic
confusion. ["The Psychology of the Transference," CW 16, par. 536.]
The
"squaring of the circle" is one of the many archetypal motifs which
form the basic patterns of our dreams and fantasies. But it is distinguished by
the fact that it is one of the most important of them from the functional point
of view. Indeed, it could even be called the archetype of wholeness. - from
Mandalas. C. G. Jung. trans. from Du (Zurich, 1955.)
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