terça-feira, 3 de junho de 2014

0

A Quaternidade em O Ovo e a Galinha de Clarice Lispector

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

* * *

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

* * *

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

* * *

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

* * *

Quatro excertos do conto O Ovo e a Galinha de Clarice Lispector são apresentados acima.

Assisti recentemente a única entrevista televisionada de Clarice Lispector, concedida em fevereiro de 1977, ao repórter Júlio Lerner para a TV Cultura de São Paulo – logo após a finalização da escritura de seu romance A Hora da Estrela.

Nesta entrevista Ela nos diz que este conto, O Ovo e a Galinha, é o seu predileto.

Achei irresistível a comparação com a psicologia de Jung. Pareceu-me (óbvio como o ovo) se tratar de chave poética para a razão do existir. Abaixo segue um texto breve descrevendo o arquétipo da quaternidade.

* * *

Quaternity: An image with a four-fold structure, usually square or circular and symmetrical; psychologically, it points to the idea of wholeness.


The quaternity is one of the most widespread archetypes and has also proved to be one of the most useful schemata for representing the arrangement of the functions by which the conscious mind takes its bearings. [See typology.] It is like the crossed threads in the telescope of our understanding. The cross formed by the points of the quaternity is no less universal and has in addition the highest possible moral and religious significance for Western man. Similarly the circle, as the symbol of completeness and perfect being, is a widespread expression for heaven, sun, and God; it also expresses the primordial image of man and the soul. ["The Psychology of the Transference," CW 16, par. 405.]

From the circle and quaternity motif is derived the symbol of the geometrically formed crystal and the wonder-working stone. From here analogy formation leads on to the city, castle, church, house, and vessel. Another variant is the wheel (rota). The former motif emphasizes the ego’s containment in the greater dimension of the self; the latter emphasizes the rotation which also appears as a ritual circumambulation. Psychologically, it denotes concentration on and preoccupation with a centre. ["The Structure and Dynamics of the Self," CW 9ii, par. 352.]

Jung believed that the spontaneous production of quaternary images (including mandalas), whether consciously or in dreams and fantasies, can indicate the ego’s capacity to assimilate unconscious material. But they may also be essentially apotropaic, an attempt by the psyche to prevent itself from disintegrating.

These images are naturally only anticipations of a wholeness which is, in principle, always just beyond our reach. Also, they do not invariably indicate a subliminal readiness on the part of the patient to realize that wholeness consciously, at a later stage; often they mean no more than a temporary compensation of chaotic confusion. ["The Psychology of the Transference," CW 16, par. 536.]

The "squaring of the circle" is one of the many archetypal motifs which form the basic patterns of our dreams and fantasies. But it is distinguished by the fact that it is one of the most important of them from the functional point of view. Indeed, it could even be called the archetype of wholeness. - from Mandalas. C. G. Jung. trans. from Du (Zurich, 1955.)




Seja o primeiro a comentar: