sábado, 14 de junho de 2014

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Mal Traçadas




- Oi.
- Pode falar.
- Falar o quê?
- Ué, você botou o travessão na frente. Travessão se usa quando a gente vai falar alguma coisa. Vai, desembucha.
- Até aí estamos quites, você também tá usando travessão.
- Usei pra responder. Tava quieto no meu canto, por mim ficava mudo e escondido como um tratado de química inorgânica numa biblioteca pública.
- É, você é mesmo de poucas palavras. Nem uma linha quinta-feira passada, nosso aniversário de namoro.
- Nem uma linha uma vírgula! Te deixei uma citação inteira, grifada em vermelho, você é que não reparou. Um trecho lindo da Adélia Prado. Admito que costumo falar pouco, mas antes monossilábico que prolixo. Muita gente fala, fala e não diz coisa com coisa.
- É uma indireta pra mim?
- Você e suas deduções. Entenda como quiser.
- Acho que está mais do que na hora da gente discutir a redação. Ainda não consegui engolir a exclamação que você soltou para aquela vogal saidinha.
- Caramba, isso foi lá no segundo capítulo. Nem lembrava mais disso.
- E depois tem outras coisas, que é bom que fiquem claras de uma vez por todas:
- Ih, Jesus amado, colocou dois pontos. Agora o discurso vai longe. Me poupe, pula uns oito ou dez parágrafos, esse texto eu já conheço. Vai direto pra última frase, vai.
- Ad commodum suum quisquis callidus est.
- Pode poupar o seu latim, não estou nem te escutando.
- Kalispera yassas den kataleveno akrivo.
- Definitivamente, o que você fala pra mim é grego.
- Olha, que tal parar com evasivas e encarar a realidade? Vê se cresce...
- Meu amor, aquela letra que você falou não faz meu tipo. Você sabe que eu prefiro as mais encorpadas, corpo 18 ou 20, como você. Nós nascemos um pro outro, morzinho. Vamos juntar os trapos e encher a casa de letrinhas de bula, heim?
- Casar com você? Tá bom... deixa eu terminar meu tratamento anti-serifa que você vai ver só eu desfilar lisinha por aí.
- Já sei, vai se transformar numa verdadeira Helvética Light Condensed.
- Pra você, um legítimo Bookman Old Style Extra Bold, eu tô de muito bom tamanho. Tá vendo o gato daquele G? Um que parece o KK, ali na linha de baixo... então, dizem que tá enrabichado por mim e que até fez um acróstico em minha homenagem.
- Não foi isso o que L disse pro meu til. A versão que eu conheço é bem diferente.
- Tá com ciúme, bem? Hã?
- O que me magoa é essa sua ingratidão. Eu te tirei daquela vida gramaticalmente desregrada, te levei pra morar numa obra decente, de autor famoso, com capa dura e nota de rodapé.
- Nem me fala, essa página eu prefiro rasgar. Foi um erro tão crasso que até o Pasquale comentou na coluna dele.
- Devia ter te deixado lá, jogada às traças naquele sebo de subúrbio, no meio da pilha de gibis do Bidu. Você renega a própria história.
- A história toda, não. Só alguns capítulos muito mal-escritos...
- De novo sendo reticente. Fala com todas as letras o que tem que dizer, poxa. Pra mim o que você quer mesmo é voltar pro Epílogo, aquele seu caso que acabou terminando mal, lembra?
- Lembro sim, foi no tempo em que você saía com a Resenha, a venenosa que falava muitíssimo bem da sua pessoa pra todo mundo.
- Agora chega. Com você não tem diálogo.

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