quinta-feira, 26 de junho de 2014

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Pequenas hisórias 102





                                   para a Asta Vonzodas

 




Ele fechou o livro ao mesmo tempo abriu a janela do ônibus e recebeu o ar da manhã ensolarada que, em contrapartida, dissipou o cheiro de combustível que o incomodava.
Fechou o livro. Sabia que precisava caminhar, esquecer tudo para lembrar o nada cheio de nódoas corrompendo o mundo.
Durante quantos dias passou no convívio das três mulheres? Uma em cada época, separada e, no entanto ligadas por um único livro: Mrs. Dollway.  Todas com um sofrimento, se doando cheia de compaixão de si própria, tendo a alma carregada de aflições e angustia. O sofrer move caminhadas, disse para si.
Nisso começou cair uma chuva fina anunciando queda de temperatura. Sentiu no rosto, nos cabelos uma aflição de suor frio que colava seu sentimento. Aliás, não preciso me preocupar mais com o horário, não preciso descer do ônibus apressado e quase correndo atravessar a rua, passar o cartão na catraca desejando que o elevador esteja no térreo evitando chegar muito atrasado, não ouvirei mais o chefe pedindo para maneirar no horário, não ouvirei mais, isto é, por enquanto pois não sei o que me acontecerá daqui a um minuto, se soubesse pouparia muita coisa. Dessa cilada estou livre, poderei cair em outra, mas dessa estou livre.
Uma onda de angustia deixava-o com sentimento de ser uma pessoa pequena, e, essa pequeneza colocava-o nu, fazendo se entregar sem perceber. Não era pequeno, o ônibus com suas poltronas é que o fazia pequeno, assim como, o movimento das pessoas, da chuva, do rapaz que no banco ao lado se espreguiça abrindo os olhos, o horário, tudo lhe vinha à noção opressora de pequeno, de um grão de areia a rolar de um lado para o outro. O mundo lhe era grande demais para conter toda a emoção que o envolvia. Não se desesperava e, muito menos entrava em depressão, não, até se entregava como forma de recuperar alguma coisa. Às vezes caia numa espécie de torpor que traduzia como sendo tristeza, mas era algo passageiro.
Ao se preparar para levantar-se, uma folha de papel caiu de dentro do livro. Era o poema da sua amiga, excelente poeta: Asta Vonzodas. Queria lhe fazer uma surpresa. Queria compor um conto talvez, baseado nesse poema: Caminhar, apenas. Aliás, era o que vinha ultimamente fazendo, caminhar, apenas e nada mais. Leu o poema com atenção. Depois devolveu o poema as folhas do livro. E enquanto caminhava mentalmente as palavras do poema batia nas paredes da mente abafando os pensamentos que o afligia.

Caminhar, apenas
Asta Vonzodas
 
Caminhar apenas,
esquecer de tudo.
Limpar as nódoas
deste corpo imundo.

Da alma?
O sofrer
é bem mais fundo.
Cai do céu a chuva fina,
cola-me ao rosto os cabelos.
Me dispo e nua, me entrego
aos céus em desespero.

Lavo rosto, braços
e com mãos de aço
tiro do corpo
o gosto do teu cheiro.

A alma chove
pelo céu dos olhos,
inundando o côncavo
dos seios.

E permanece, pura,
invólucro invisível
dos desejos.



pastorelli

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