sábado, 13 de dezembro de 2014

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A SÍNDROME DOS LIVROS ILEGÍVEIS



O DESBOTAMENTO
Como muitas das desgraças desse mundo, a síndrome dos livros ilegíveis foi se instalando de forma silenciosa e quase despercebida. Quando os títulos dos volumes começaram a sumir aos poucos das lombadas, muitos não deram importância, atribuindo o fenômeno à luz do aposento, à vista cansada ou algo do gênero. A manhã do dia seguinte invalidaria essas hipóteses, revelando que nada é tão ruim que não possa ser pior.

TODO LIVRO É QUALQUER LIVRO
Das pequenas estantes domésticas às prateleiras das grandes bibliotecas, os livros foram todos se tornando indistintos. Era preciso abri-los e iniciar a leitura para identificar a obra. Mas a desgraça maior viria algumas horas mais tarde: relatos de todas as partes do mundo informavam o gradativo desaparecimento dos textos, transformando os livros em cadernos de anotações, com centenas de páginas em branco.

AS TENTATIVAS INFRUTÍFERAS
Pensavam alguns abnegados que, enquanto houvesse um pálido traço de letra antes do inevitável apagamento, haveria tempo de pelo menos tentar reforçar a caneta o conteúdo. Mas a tinta recém-aplicada também apagava-se à medida em que ia sendo posta no papel. Esgotados pelo esforço inútil, os heroicos voluntários quedavam-se inconsoláveis, vendo o conhecimento do mundo ser tragado pelo nada e sem explicação plausível.

Outros disparavam feito loucos suas câmeras fotográficas sobre as páginas dos livros e documentos ainda não contaminados, tentando salvar o que pudessem da ruína para depois reproduzir seu conteúdo, quando o pesadelo passasse.

Donos de cartório desesperavam-se na impossibilidade de administrar o caos, assistindo as propriedades perderem seus proprietários, esposas perderem seus maridos, pessoas perderem nomes, devedores serem libertos de credores, testamentos se anularem por nada testamentar.

O CONTÁGIO
Da ausência de conteúdo nos livros deu-se em seguida a perda da função das letras, que tornaram-se formas gráficas sem significado algum. Um “s” continuava sendo um “s”, com a diferença de que agora não servia para nada. Olhava-se aquilo como a representação de uma minhoca, uma cobra, um pedaço de mola ou algo parecido. A epidemia do insignificado alastrou-se e infectou as bulas e rótulos dos remédios, que assim tornaram-se potenciais causadores da morte ao invés da cura, já que não mostravam o que eram nem que alívio ofereciam. A única e perigosa alternativa era a tentativa e erro na ingestão de medicamentos e dosagens, o que não raro resultava em óbito. Mesmo os mortos não escapavam à fúria destruidora de letras: no campo santo, já não se distinguiam nem os nomes dos finados, nem seus inspirados epitáfios. Tudo sob a terra se ajuntava em um genérico cadáver.



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