sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

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A DELICADEZA DOS HIPOPÓTAMOS: UM ROMANCE ESCRITO COM TERNURA E SANGUE

Em janeiro de 2013, recebi um documento gravado no word que trazia um romance para que eu pudesse ler e fazer uma avaliação que gerasse  sugestões, algo corriqueiro quando se é um leitor e há dentro do seu ciclo de amizades um escritor. Recordo que levei três dias para concluir a leitura, na última noite, onde encontrei o desfecho daquela obra, tive uma madrugada de sonhos intranquilos, uma sensação de inadequação havia se instalado em mim, sensação da qual só consegui me livrar quando escrevi a novela Os laços da fita, a qual já mais existiria sem a leitura de A Delicadeza dos hipopótamos, de Daniel Lopes.
Imagine se Ulisses estivesse exilado por vontade própria e a sua Penélope estivesse dividida em duas, uma metade homem, outra mulher, mas em um determinado dia, o rei seguindo o seu desejo, retornasse para sua terra, sabendo ele que a rainha estivera por um tempo noutro reino longe dali, nos braços de outro monarca, entediada de tristeza regressara para sua Ítaca com olhos vazios, descrente na vida como fonte de prazer. A força do único homem capaz de envergar o arco sucumbiria diante da trajetória da flecha, pois lhe seria revelado que esta sempre esteve fincada em seu peito.
Troquemos Ulisses por Léo, Penélope por Bia e Pedro, Ìtaca por Tamar, a fúria de um deus pelo desconforto existencial e encontraremos o romance o segundo romance do escritor Daniel Lopes.
O regresso do protagonista para sua terra natal, um vilarejo místico-mítico, o faz encontrar no mundo concreto, o que as sensações e sentimentos já tinham lhe sussurrado ao longo de seu período de desterro: Desajuste é sinônimo de existência. O que propicia ao leitor o encontro com grandes momentos ensaísticos (eu deveria fazer uma citação aqui, no velho esquema acadêmico: dizer e mostrar, mas confio que você não precisará da minha ajuda). 
Talvez seja por meio do olhar que lançamos aos nossos contemporâneos que melhor conseguimos enxergar os efeitos que o tempo causou em nós mesmos: Gordo o garoto magro, agora era homem, estava no bar de Mariano, Mauro o bruto escultor, ele mesmo metáfora de sua arte ao retirar da aspereza da pedra a beleza. Uma venda que resumia a aura do lugar que para além da paisagem, decorava cada um de seus moradores em seus interiores. 
Em cada passo Léo personagem-narrador alterna o que vê no agora, essa coisa que chamamos de presente com o passado, uma bela costura do autor na concepção da obra. 
Narrar e filosofar é algo raro, ou melhor, feito de maneira que não deixa nenhuma das partes em desequilíbrio, soando natural na boca das personagens. Daniel contraria Caetano, se você tiver uma boa ideia e talento escreva uma narrativa longa!
Uma característica do autor encontrada em suas outras obras que permanece nesta é o espanto da delicadeza em meio à brutalidade, Bia capaz de tocar belas melodias em seu piano, tece uma colcha com uma mensagem-portal do além-bem, Pedro sonhador, optou por um sono prolongado, talvez, em companhia de Tomásia, Totônio Rodrigues e muitos outros.
Depois de dois anos, ao ler a obra agora aprisionada no formato livro, revisada por seu autor, não ocorreu alteração em sua capacidade de dialogar com a profundeza humana, o que nos mostra que literatura, independente do suporte, da indústria que tenta transformá-la em produto, dos que se enganam ao se intitularem escritores, é feita por palavras que superam as impressões superficiais vindas do sentimento e só se tornam arte quando alguém que carrega o gosto de sangue na boca as cospe no mundo como um bofetão que impede o moribundo de perder a consciência.


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