quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

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Bali Ha'i



Pretensão é um momento antes do susto.

Acho que li isso em algum lugar. Ou posso ter falado isso em algum momento. Mas estou muito velha e minha memória nunca foi muito boa. Tenho oitenta e cinco anos, três meses, dez dias e vinte e três horas de uma vida que me dói frente aos olhos e sobre as costas. Ou não dói.

A vida é doida. Doída sou eu.

Ontem, na praia sem fim em que dou voltas todas as manhãs, com a desculpa de que meu geriatra recomendou caminhadas pros ossos e sol pra pele, me ofereceram um sorvete de goiaba. Odeio goiaba. Aceitei.

Amarro os sapatos dos filhos que não tenho como um pedido de redenção. Ou uma confissão de culpa.

Ele não vai voltar. Ele abriu asas de metal pra longe dessa pedra abandonada no meio do oceano, sobre a qual ando em círculos, procurando o amanhecer.

A filha da vizinha veio aqui hoje me entregar um convite de quinze anos. Da filha dela. A neta da vizinha. Se bem me lembro, o nome da vizinha é Petrucia e estudamos juntas na infância. Então, ela o conheceu, ele fez parte da vida dela e pertence às memórias dela tanto quanto às minhas. Mas ela se casou, ela teve três filhos, um morreu de tifo, outro foi-se embora, uma cuida dela e tem uma menina de catorze anos, onze meses, quatro dias e doze horas de idade, o marido está meio tuberculoso, mas até que aparenta saúde. Como ela conseguiu seguir a vida tendo a ele na lembrança mas não por perto? Como ela foi capaz de não passar todos os seus dias pensando em como teria sido se ele não tivesse pegado aquele avião? Como ela conseguiu existir, todos esses oitenta e cinco anos, sabendo que ele havia no mundo, mas não aqui? Ela deve ter algum poder divino. Ou nenhum arrependimento. Se ela quiser, lhe dou alguns dos meus.

Somos sete bilhões neste planeta superpopuloso. E desses sete bilhões, apenas eu me sento nos bancos do aeroporto internacional a lembrar dele todos os dias às cinco da manhã, antes de ir caçar o amanhecer na praia. As outras seis bilhões, novecentos e noventa e nove milhões, novecentas e noventa e nove mil, novecentas e noventa e nove pessoas são muito poderosas. Ou esquecidas.

Nascemos no mesmo dia. No mesmo mês e no mesmo ano. E no mesmo hospital, da mesma cidade, incrustada no meio do mar. Ele me chamava de priminha. Não lembro o nome dele.

Não quis dizer à filha da vizinha que ela não precisava me dar o convite, que era um desperdício de convite, que ela devia convidar outra pessoa que não eu. Porque a festa é só mês que vem e mês que vem eu não mais existirei. Sei disso porque somos iguais, eu e ele, e não posso existir se ele não há.

E porque sou a dona do tempo e o controlo à minha vontade. Estou sempre nascendo. E sempre sei que vou morrer.

Semana passada revisitei minha festa que quinze anos. E disse sim quando ele me puxou pra dançar.

Aquela gota laranja lá longe, no horizonte, é uma lágrima de crepúsculo pela escuridão que desceu sobre ele. Que não foi bondosa o suficiente pra me engolfar primeiro. Porque nem mesmo a morte se compadece da minha espera.

Um cheiro forte de tempero sai de um restaurante, rompe a linha asfaltada da orla e chega à areia misturado com a maresia. O mar é tão presente nesta cidade que nem mesmo consigo imaginar o cheiro de outros lugares, de florestas densas e savanas abertas, de lagoas calmas e montanhas de neve. Nem posso dizer com certeza que cheiro tem o cominho quando não há mar em redor. Ou meus móveis de madeira espalhados pela casa. Ou a graxa que encharca a jaqueta de meu vizinho mecânico. Todos os lugares e todas as coisas e todas as pessoas dividem seu cheiro com a maresia aqui. O cheiro dele e o da maresia andavam sempre juntos. E, porque me esqueci a parte daquele aroma especial que era apenas dele e restou-me do cheiro que eu sentia nele a parte da maresia e nada mais, sinto a presença dele em todos os lugares. No bife com cominho do restaurante. Nos meus móveis de madeira espalhados pela casa. Na jaqueta encharcada de graxa do meu vizinho mecânico. No cheiro de Inácio. E de Fernando. E de Mateus. E de todos os que vieram depois, na minha ânsia de acertar as contas com o destino.

Mas o destino é um piadista. Gostou de me fazer lembrar o nome de cada um dos caras que não eram ele. De me fazer dizer sim a todos menos ele. E me cuspir sozinha na praia, andando em círculos, a cada amanhecer perdido pelos meus olhos octogenários.

Eu tinha vinte e seis anos, três meses, dezenove dias e quinze horas quando, pela primeira vez, fechei os olhos para imaginar nossa despedida no aeroporto, que não aconteceu porque inventei um compromisso desimportante. Apertei os olhos na parte em que eu me jogava nas costas dele e rasgava sua blusa social em três pontos porque ele se recusava a ficar. Derramei uma lágrima suja quando ele me arrastou no chão, agarrada às suas pernas, e não tive mais forças, e o soltei, e ele sumiu pelo corredor de embarque sem olhar pra trás. Enxuguei as lágrimas modificando alguns detalhes, reconstituindo sua blusa, fazendo com que ele se virasse, me desse um beijo, erguesse a mala do chão e viesse comigo. Três anos depois, no exato momento em que, com meus olhos fechados, eu decidia o melhor destino pra minha despedida inventada, veríamos pela primeira vez o rosto de nosso filho recém-nascido, não lembro o nome que lhe dei. Assim era melhor, o final era feliz.

E era mentira.

Eu chorava no escuro do quarto, a cabeça afundada no travesseiro pra ele não me ouvir soluçar. Chorava muito, durante a noite anterior às nossas festas de aniversário, quando nossas mães enrolavam docinhos e enfeitavam a casa, e logo após as festas acabarem, quando todos os parentes estavam bêbados, roncando pelos cantos em camas improvisadas. Eu chorava por ele. Enquanto ele, tão criança quanto eu, dormia na cama ao lado um sono fingido de quem não queria me impedir de chorar. Eu chorava, tanto, tanto, muito. Porque agora ele tinha menos um ano a viver.

Eu nasci pela vontade dos meus pais de serem pais, não pela minha vontade de ser filha. Se algum espírito benigno tivesse, antes do meu nascimento, me perguntado se eu queria vir a esse mundo sujo, eu diria sim. E seria não. Como de costume.

Eu fui a melhor aluna da escola. Melhor que a Petrucia. Melhor do que ele. Medalha no peito e aplausos. Esperaram demais de mim. Cuidaram de mim como a uma taça de cristal, com mãos firmes, não como a um cão carente, com mãos dóceis. Pra se certificarem de que eu estava bem, me faziam perguntas. Se eu estava com fome, não se meu coração sangrava. Se estava quente na praia, não frio na espinha.

Me desculpa por ter esquecido seu nome. Minha memória nunca foi muito boa. E eu tenho oitenta e cinco anos, três meses, dez dias e vinte e três horas de vida. É um filme longo demais pra lembrar todas as falas.

Aos quatro anos e catorze dias de idade, ele me levou escondido à praia, de madrugada, antes de amanhecer. Eram cinco da manhã quando pulamos a janela. Queríamos ver o sol se levantar por trás do horizonte, ia ser bonito. Caminhamos infinitamente por uma praia que nunca terminava, procurando o ponto exato em que o sol se ergueria. Foi ficando claro, cada vez mais claro, até que o sol apareceu por cima das nossas cabeças. Tínhamos perdido o espetáculo. E descoberto o que era uma ilha.

Descobri, muito tempo depois, já sem ele por perto para dividir a descoberta, que aqui só existe o espaço. E o espaço não aprisiona. Sou livre pra andar em círculos por oitenta e cinco anos, dando voltas na praia sem fim, à procura do amanhecer. Aqui, só existe o espaço. O tempo eu matei.

Eu lembro que ele dizia sempre as coisas certas, ainda que eu não lembre mais que coisas eram essas, nem porque eram certas.

Cabelos lisos, ele tinha, negros, a pele bem escura fazendo sobressaírem olhos claros de mel, diferentes de qualquer outro par de olhos da face dessa cidade que me aprisiona. Se eu fosse grandiloquente hoje como fui um dia, eu diria que os olhos dele eram os mais bonitos do mundo, que ele era o homem mais bonito que já existiu. Mas seria mentira, pois, embora ele até pudesse ter os olhos mais bonitos do mundo ou ser o homem mais bonito que já existiu, eu jamais poderia afirmar isso. Eu nunca saí desse lugar. Eu nunca tive a coragem dele.

Ele abriu asas de metal pra longe de Icária, de Atlântis. De Bali Ha’i.

Me desculpa por ter dito não quando era sim em todas as vezes em que eu disse não e era sim. Porque eu sei que os meus nãos te levaram embora. E algo muito fundo me diz que, longe daqui, você nunca encontrou o amanhecer.

Porque somos iguais. Nascemos no mesmo dia, mesmo mês, mesmo ano. E eu nunca encontrei o amanhecer.

Quando caminho pela praia de manhã, gosto de contar as cores do céu. Lembro todas que já vi um dia e sei que nenhuma delas é a cor certa. A cor que procuro é o primeiro facho de claridade rompendo a escuridão da madrugada. A cor que procuro é a terceira campainha, pedindo silêncio porque o espetáculo está pra começar. Um pouco antes de se abrir a cortina de luz que o carro de Apolo carrega. Essa, a cor que nunca encontrei, é a que quero guardar na minha pouca memória como a cor dos olhos dele, porque a verdadeira há muito esqueci.

Conheço as pedras da praia como não conheço as linhas da minha mão, embora eu me lembre de alguém, não sei quem, dizendo, não sei quando, que a minha linha da vida é muito longa, mais longa do que se deva desejar. Sento nas pedras da praia enquanto ainda não estão muito quentes, fecho os olhos, todos os dias, como num ritual. E retorno a algum dos elos fracos da corrente do tempo. Quando me libertei da cela do presente e me tornei senhora do tempo, nenhuma barreira jamais intercedeu entre mim e meus arrependimentos.

Me arrependo, por exemplo, de ter dito não quando ele me convidou para sair pela primeira vez, aos treze anos, cinco meses, oito dias e seis horas de idade. Porque eu sempre dizia não querer o que na verdade queria, sempre mentia que não era preciso quando era. Que eu não queria o bombom, que não precisava do presente e que a cama estava confortável, obrigada.

Volto no tempo e digo que sim. Depois reconstruo o que poderia ter vindo após a resposta certa que nunca dei. E, no exato momento em que, de olhos fechados sobre uma das pedras da praia, esculpo uma vida que não vivi porque existe livre-arbítrio pra estragar toda e qualquer predestinação, mesmo a de duas almas que vieram ao mundo no mesmo dia do mesmo mês do mesmo ano no hospital de uma pedra a boiar abandonada no meio do oceano, com tantos outros lugares para nascerem, eu deveria estar dando de comer a um neto pequeno, planejando o casamento de uma filha grávida, ajudando-o a escolher sapatos, tentando tirar a aliança que prendeu no dedo porque engordei demais depois da terceira gravidez. Eu deveria estar em Londres, numa viagem de família ou em segunda lua de mel, em vez de viver de mentiras.

Se tivéssemos nascido irmãos, amar seria fácil.

E eu continuei dizendo que não precisava ligar a tevê, que a comida estava ótima, que os livros não estavam pesados. Por isso estou sentada nesta pedra às nove horas de uma manhã dos meus oitenta e cinco anos, depois de ter perdido mais um amanhecer.

Dalton é o menino paralítico do andar de baixo. Tem oito anos, quatro meses, dois dias e cinco horas de idade. Ele um dia me disse que é infeliz. Respondi, com minha melhor expressão falsa de velha sábia, que ele não sabe nada sobre a verdadeira infelicidade. Ele perguntou o que eu sabia sobre não poder andar. Eu respondi que é pior poder andar e não saber o caminho. E porque isso era muito clichê para marcar minha vitória na discussão, completei que ainda pior é saber o caminho e não o encontrar.

Eu estava mentindo pro Dalton. Ele sabe bem até demais o que é ser infeliz e eu realmente não sei nada sobre a tristeza dele. E provavelmente a minha infelicidade de andar em círculos todos os dias pela praia em busca de um amanhecer que talvez eu mesma me esforce por não encontrar na esperança agora morta de trazê-lo de volta não seja nada perto da infelicidade de Dalton de não conhecer a sensação terrível de pisar a areia escaldante de uma praia ao sol.

Minha vida é uma mentira ininterrupta e octogenária. Por todas as vezes em que meu não era sim, por todos os momentos em que um titerista maldito comandou minhas mãos pra longe do que eu queria pegar, meus olhos pra longe do que eu desejava ver, meus pés pra longe do caminho que eu julgava certo, minhas palavras pra serem inverídicas.

Ele quis me ensinar a nadar. Não deixei, mas eu queria. E porque também não sei voar, e porque minhas asas são de cera, passei minha vida aprisionada sobre esta pedra no meio do oceano.

Eu queria escrever uma carta pra ele, mas não me lembro como se faz. Então, desisto. Até porque ele não vai receber. Ele morreu anteontem, aos oitenta e cinco anos, três meses, oito dias e quinze horas de idade, exatamente a minha idade. Teve uma parada cardíaca, talvez respiratória, não me lembro. Estou muito velha e minha memória nunca foi muito boa. Do tanto que eu poderia me lembrar com fixação durante todos esses oitenta e cinco anos, três meses etc. etc. de vida, fui me lembrar sempre dele, obstinada, obcecada, sentada nas pedras quentes da praia ou nos bancos do aeroporto internacional. Esperando.

Ele abriu asas de metal pra longe daqui quando tínhamos vinte e três anos, quatro meses, doze dias e duas horas de idade. Por todas as minhas respostas ao avesso. Por todos os meus nãos que eram mentira. Por todos os meus sins que eram pecado.

Então, se devo dizer algo, e devo, ainda que ele não possa, e não pode, me ouvir, digo que foi preciso. Tive que mentir na sua cara, tive que cuspir na sua cara, que fingir não amar nem enxergar seu amor. Precisei te empurrar com força pra longe da areia dessa praia sem fim, onde eu andaria a vida inteira em círculos, na burrice de um cão, perseguindo o amanhecer. Precisei, eu juro. Pois era Fado, acredite. Porque amar, pra nós, tinha que doer e nossa infelicidade redentora impediu a explosão do universo.

Entender que esperanças muito grandes também acabam.

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