Pretensão é um momento antes do susto.
Acho que li isso em algum lugar. Ou
posso ter falado isso em algum momento. Mas estou muito velha e minha memória
nunca foi muito boa. Tenho oitenta e cinco anos, três meses, dez dias e vinte e
três horas de uma vida que me dói frente aos olhos e sobre as costas. Ou não
dói.
A vida é doida. Doída sou eu.
Ontem, na praia sem fim em que dou
voltas todas as manhãs, com a desculpa de que meu geriatra recomendou
caminhadas pros ossos e sol pra pele, me ofereceram um sorvete de goiaba. Odeio
goiaba. Aceitei.
Amarro os sapatos dos filhos que não tenho
como um pedido de redenção. Ou uma confissão de culpa.
Ele não vai voltar. Ele abriu asas de
metal pra longe dessa pedra abandonada no meio do oceano, sobre a qual ando em
círculos, procurando o amanhecer.
A filha da vizinha veio aqui hoje me
entregar um convite de quinze anos. Da filha dela. A neta da vizinha. Se bem me
lembro, o nome da vizinha é Petrucia e estudamos juntas na infância. Então, ela
o conheceu, ele fez parte da vida dela e pertence às memórias dela tanto quanto
às minhas. Mas ela se casou, ela teve três filhos, um morreu de tifo, outro
foi-se embora, uma cuida dela e tem uma menina de catorze anos, onze meses,
quatro dias e doze horas de idade, o marido está meio tuberculoso, mas até que
aparenta saúde. Como ela conseguiu seguir a vida tendo a ele na lembrança mas
não por perto? Como ela foi capaz de não passar todos os seus dias pensando em
como teria sido se ele não tivesse pegado aquele avião? Como ela conseguiu existir,
todos esses oitenta e cinco anos, sabendo que ele havia no mundo, mas não aqui?
Ela deve ter algum poder divino. Ou nenhum arrependimento. Se ela quiser, lhe
dou alguns dos meus.
Somos sete bilhões neste planeta
superpopuloso. E desses sete bilhões, apenas eu me sento nos bancos do
aeroporto internacional a lembrar dele todos os dias às cinco da manhã, antes
de ir caçar o amanhecer na praia. As outras seis bilhões, novecentos e noventa
e nove milhões, novecentas e noventa e nove mil, novecentas e noventa e nove
pessoas são muito poderosas. Ou esquecidas.
Nascemos no mesmo dia. No mesmo mês e no
mesmo ano. E no mesmo hospital, da mesma cidade, incrustada no meio do mar. Ele
me chamava de priminha. Não lembro o nome dele.
Não quis dizer à filha da vizinha que
ela não precisava me dar o convite, que era um desperdício de convite, que ela
devia convidar outra pessoa que não eu. Porque a festa é só mês que vem e mês
que vem eu não mais existirei. Sei disso porque somos iguais, eu e ele, e não
posso existir se ele não há.
E porque sou a dona do tempo e o
controlo à minha vontade. Estou sempre nascendo. E sempre sei que vou morrer.
Semana passada revisitei minha festa que
quinze anos. E disse sim quando ele me puxou pra dançar.
Aquela gota laranja lá longe, no
horizonte, é uma lágrima de crepúsculo pela escuridão que desceu sobre ele. Que
não foi bondosa o suficiente pra me engolfar primeiro. Porque nem mesmo a morte
se compadece da minha espera.
Um cheiro forte de tempero sai de um
restaurante, rompe a linha asfaltada da orla e chega à areia misturado com a
maresia. O mar é tão presente nesta cidade que nem mesmo consigo imaginar o
cheiro de outros lugares, de florestas densas e savanas abertas, de lagoas calmas
e montanhas de neve. Nem posso dizer com certeza que cheiro tem o cominho
quando não há mar em redor. Ou meus móveis de madeira espalhados pela casa. Ou
a graxa que encharca a jaqueta de meu vizinho mecânico. Todos os lugares e
todas as coisas e todas as pessoas dividem seu cheiro com a maresia aqui. O
cheiro dele e o da maresia andavam sempre juntos. E, porque me esqueci a parte daquele
aroma especial que era apenas dele e restou-me do cheiro que eu sentia nele a
parte da maresia e nada mais, sinto a presença dele em todos os lugares. No
bife com cominho do restaurante. Nos meus móveis de madeira espalhados pela
casa. Na jaqueta encharcada de graxa do meu vizinho mecânico. No cheiro de Inácio.
E de Fernando. E de Mateus. E de todos os que vieram depois, na minha ânsia de
acertar as contas com o destino.
Mas o destino é um piadista. Gostou de
me fazer lembrar o nome de cada um dos caras que não eram ele. De me fazer
dizer sim a todos menos ele. E me cuspir sozinha na praia, andando em círculos,
a cada amanhecer perdido pelos meus olhos octogenários.
Eu tinha vinte e seis anos, três meses,
dezenove dias e quinze horas quando, pela primeira vez, fechei os olhos para
imaginar nossa despedida no aeroporto, que não aconteceu porque inventei um
compromisso desimportante. Apertei os olhos na parte em que eu me jogava nas
costas dele e rasgava sua blusa social em três pontos porque ele se recusava a
ficar. Derramei uma lágrima suja quando ele me arrastou no chão, agarrada às
suas pernas, e não tive mais forças, e o soltei, e ele sumiu pelo corredor de
embarque sem olhar pra trás. Enxuguei as lágrimas modificando alguns detalhes,
reconstituindo sua blusa, fazendo com que ele se virasse, me desse um beijo,
erguesse a mala do chão e viesse comigo. Três anos depois, no exato momento em
que, com meus olhos fechados, eu decidia o melhor destino pra minha despedida
inventada, veríamos pela primeira vez o rosto de nosso filho recém-nascido, não
lembro o nome que lhe dei. Assim era melhor, o final era feliz.
E era mentira.
Eu chorava no escuro do quarto, a cabeça
afundada no travesseiro pra ele não me ouvir soluçar. Chorava muito, durante a
noite anterior às nossas festas de aniversário, quando nossas mães enrolavam
docinhos e enfeitavam a casa, e logo após as festas acabarem, quando todos os
parentes estavam bêbados, roncando pelos cantos em camas improvisadas. Eu
chorava por ele. Enquanto ele, tão criança quanto eu, dormia na cama ao lado um
sono fingido de quem não queria me impedir de chorar. Eu chorava, tanto, tanto,
muito. Porque agora ele tinha menos um ano a viver.
Eu nasci pela vontade dos meus pais de
serem pais, não pela minha vontade de ser filha. Se algum espírito benigno
tivesse, antes do meu nascimento, me perguntado se eu queria vir a esse mundo
sujo, eu diria sim. E seria não. Como de costume.
Eu fui a melhor aluna da escola. Melhor
que a Petrucia. Melhor do que ele. Medalha no peito e aplausos. Esperaram
demais de mim. Cuidaram de mim como a uma taça de cristal, com mãos firmes, não
como a um cão carente, com mãos dóceis. Pra se certificarem de que eu estava
bem, me faziam perguntas. Se eu estava com fome, não se meu coração sangrava. Se
estava quente na praia, não frio na espinha.
Me desculpa por ter esquecido seu nome. Minha
memória nunca foi muito boa. E eu tenho oitenta e cinco anos, três meses, dez
dias e vinte e três horas de vida. É um filme longo demais pra lembrar todas as
falas.
Aos quatro anos e catorze dias de idade,
ele me levou escondido à praia, de madrugada, antes de amanhecer. Eram cinco da
manhã quando pulamos a janela. Queríamos ver o sol se levantar por trás do
horizonte, ia ser bonito. Caminhamos infinitamente por uma praia que nunca
terminava, procurando o ponto exato em que o sol se ergueria. Foi ficando
claro, cada vez mais claro, até que o sol apareceu por cima das nossas cabeças.
Tínhamos perdido o espetáculo. E descoberto o que era uma ilha.
Descobri, muito tempo depois, já sem ele
por perto para dividir a descoberta, que aqui só existe o espaço. E o espaço
não aprisiona. Sou livre pra andar em círculos por oitenta e cinco anos, dando
voltas na praia sem fim, à procura do amanhecer. Aqui, só existe o espaço. O
tempo eu matei.
Eu lembro que ele dizia sempre as coisas
certas, ainda que eu não lembre mais que coisas eram essas, nem porque eram
certas.
Cabelos lisos, ele tinha, negros, a pele
bem escura fazendo sobressaírem olhos claros de mel, diferentes de qualquer
outro par de olhos da face dessa cidade que me aprisiona. Se eu fosse
grandiloquente hoje como fui um dia, eu diria que os olhos dele eram os mais
bonitos do mundo, que ele era o homem mais bonito que já existiu. Mas seria
mentira, pois, embora ele até pudesse ter os olhos mais bonitos do mundo ou ser
o homem mais bonito que já existiu, eu jamais poderia afirmar isso. Eu nunca
saí desse lugar. Eu nunca tive a coragem dele.
Ele abriu asas de metal pra longe de
Icária, de Atlântis. De Bali Ha’i.
Me desculpa por ter dito não quando era
sim em todas as vezes em que eu disse não e era sim. Porque eu sei que os meus
nãos te levaram embora. E algo muito fundo me diz que, longe daqui, você nunca
encontrou o amanhecer.
Porque somos iguais. Nascemos no mesmo
dia, mesmo mês, mesmo ano. E eu nunca encontrei o amanhecer.
Quando caminho pela praia de manhã,
gosto de contar as cores do céu. Lembro todas que já vi um dia e sei que nenhuma
delas é a cor certa. A cor que procuro é o primeiro facho de claridade rompendo
a escuridão da madrugada. A cor que procuro é a terceira campainha, pedindo
silêncio porque o espetáculo está pra começar. Um pouco antes de se abrir a
cortina de luz que o carro de Apolo carrega. Essa, a cor que nunca encontrei, é
a que quero guardar na minha pouca memória como a cor dos olhos dele, porque a
verdadeira há muito esqueci.
Conheço as pedras da praia como não
conheço as linhas da minha mão, embora eu me lembre de alguém, não sei quem,
dizendo, não sei quando, que a minha linha da vida é muito longa, mais longa do
que se deva desejar. Sento nas pedras da praia enquanto ainda não estão muito
quentes, fecho os olhos, todos os dias, como num ritual. E retorno a algum dos elos
fracos da corrente do tempo. Quando me libertei da cela do presente e me tornei
senhora do tempo, nenhuma barreira jamais intercedeu entre mim e meus
arrependimentos.
Me arrependo, por exemplo, de ter dito
não quando ele me convidou para sair pela primeira vez, aos treze anos, cinco
meses, oito dias e seis horas de idade. Porque eu sempre dizia não querer o que
na verdade queria, sempre mentia que não era preciso quando era. Que eu não
queria o bombom, que não precisava do presente e que a cama estava confortável,
obrigada.
Volto no tempo e digo que sim. Depois
reconstruo o que poderia ter vindo após a resposta certa que nunca dei. E, no
exato momento em que, de olhos fechados sobre uma das pedras da praia, esculpo
uma vida que não vivi porque existe livre-arbítrio pra estragar toda e qualquer
predestinação, mesmo a de duas almas que vieram ao mundo no mesmo dia do mesmo
mês do mesmo ano no hospital de uma pedra a boiar abandonada no meio do oceano,
com tantos outros lugares para nascerem, eu deveria estar dando de comer a um
neto pequeno, planejando o casamento de uma filha grávida, ajudando-o a
escolher sapatos, tentando tirar a aliança que prendeu no dedo porque engordei
demais depois da terceira gravidez. Eu deveria estar em Londres, numa viagem de
família ou em segunda lua de mel, em vez de viver de mentiras.
Se tivéssemos nascido irmãos, amar seria
fácil.
E eu continuei dizendo que não precisava
ligar a tevê, que a comida estava ótima, que os livros não estavam pesados. Por
isso estou sentada nesta pedra às nove horas de uma manhã dos meus oitenta e
cinco anos, depois de ter perdido mais um amanhecer.
Dalton é o menino paralítico do andar de
baixo. Tem oito anos, quatro meses, dois dias e cinco horas de idade. Ele um
dia me disse que é infeliz. Respondi, com minha melhor expressão falsa de velha
sábia, que ele não sabe nada sobre a verdadeira infelicidade. Ele perguntou o
que eu sabia sobre não poder andar. Eu respondi que é pior poder andar e não
saber o caminho. E porque isso era muito clichê para marcar minha vitória na
discussão, completei que ainda pior é saber o caminho e não o encontrar.
Eu estava mentindo pro Dalton. Ele sabe bem
até demais o que é ser infeliz e eu realmente não sei nada sobre a tristeza
dele. E provavelmente a minha infelicidade de andar em círculos todos os dias pela
praia em busca de um amanhecer que talvez eu mesma me esforce por não encontrar
na esperança agora morta de trazê-lo de volta não seja nada perto da
infelicidade de Dalton de não conhecer a sensação terrível de pisar a areia
escaldante de uma praia ao sol.
Minha vida é uma mentira ininterrupta e
octogenária. Por todas as vezes em que meu não era sim, por todos os momentos
em que um titerista maldito comandou minhas mãos pra longe do que eu queria pegar,
meus olhos pra longe do que eu desejava ver, meus pés pra longe do caminho que
eu julgava certo, minhas palavras pra serem inverídicas.
Ele quis me ensinar a nadar. Não deixei,
mas eu queria. E porque também não sei voar, e porque minhas asas são de cera, passei
minha vida aprisionada sobre esta pedra no meio do oceano.
Eu queria escrever uma carta pra ele,
mas não me lembro como se faz. Então, desisto. Até porque ele não vai receber.
Ele morreu anteontem, aos oitenta e cinco anos, três meses, oito dias e quinze
horas de idade, exatamente a minha idade. Teve uma parada cardíaca, talvez respiratória,
não me lembro. Estou muito velha e minha memória nunca foi muito boa. Do tanto
que eu poderia me lembrar com fixação durante todos esses oitenta e cinco anos,
três meses etc. etc. de vida, fui me lembrar sempre dele, obstinada, obcecada,
sentada nas pedras quentes da praia ou nos bancos do aeroporto internacional.
Esperando.
Ele abriu asas de metal pra longe daqui
quando tínhamos vinte e três anos, quatro meses, doze dias e duas horas de
idade. Por todas as minhas respostas ao avesso. Por todos os meus nãos que eram
mentira. Por todos os meus sins que eram pecado.
Então, se devo dizer algo, e devo, ainda
que ele não possa, e não pode, me ouvir, digo que foi preciso. Tive que mentir
na sua cara, tive que cuspir na sua cara, que fingir não amar nem enxergar seu
amor. Precisei te empurrar com força pra longe da areia dessa praia sem fim,
onde eu andaria a vida inteira em círculos, na burrice de um cão, perseguindo o
amanhecer. Precisei, eu juro. Pois era Fado, acredite. Porque amar, pra nós,
tinha que doer e nossa infelicidade redentora impediu a explosão do universo.
Entender que esperanças muito grandes
também acabam.
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