terça-feira, 27 de janeiro de 2015

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Pequenas histórias 125.


 
 
 
 
 
Numa letra


 
 
 
Numa letra miúda e redonda, a qual, ocupava as últimas linhas da folha releu o que tinha escrito: dormiu profundamente até o dia seguinte. Folheou as folhas em branco, o vazio a ser preenchido. Havia material suficiente? Talvez sim, talvez não, tudo dependeria de como o vazio encalacrado nas linhas da vida o conduziria. Até aquele momento caminhava aos tropeços sem cair. Tropeços que em parte era ocasionado por uma estúpida timidez.
Lento, preocupado nem sempre, mas angustiado, em suspensão conduzia um pé após o outro no calçamento novo da avenida.
Escrevia na momentaneidade dos sentimentos alvoroçando o ir e vir. Colhia os quinhões de cada cena emoldurando o dia, à noite ou mesmo, as madrugadas na palma da mão levitando nas direções dos silenciosos sons que ouvia.
O que escrevia, ousou perguntar a si mesmo. O que escrevia? Retrocedeu umas páginas do caderno para avivar a memória. Afinal não poderia escrever as mesmas coisas, os mesmos dizeres, as mesmas palavras. Até poderia, mas teria de idealizar um tratamento diferente, mais inventivo, criativo. Achou a palavra correta: criativo. Vinha sendo criativo? Calculava que sim. Mesmo que não houvesse um feedback estava sendo sim.
Notou, assim de repente, que em seu repertório não havia lugar para o já fui. Percebeu essa falha ao conversar com um amigo que lhe dissera: já fui casado. Ele não podia usar essa expressão, pois tudo nele estava sendo, estava envolvendo-o no clima presente. O já fui isso ou aquilo não vinha a calhar, era uma coisa que nunca entendeu e que nunca conseguiria entender. Como por exemplo, o já fui casado. O que isso significava para ele. Nada. Continuava casado, mesmo que fosse um casamento pro forma, estava casado. Tentou se imaginar na situação de já fui casado. Se imaginar novamente solteiro, vivendo na solidão de estar tão somente sozinho, sem ter alguém azucrinando seus ouvidos com isso ou com aquilo. Entrando e saindo de casa a hora que quisesse, sem dar satisfações. Impossível, não foi feito para tal situação.
Sua inexperiência não lhe dava o reforço necessário para ser o já fui.

pastorelli

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