Muitos
jardins no universo da literatura estão associados à abertura para novas
maneiras de perceber o mundo, desde Adão e Eva, passando pela epifania da dona
de casa em Amor, de Clarice Lispector
e Bliss, de Katherine Mansfield. Em
seu primeiro romance A Flor da pele, Cláudia Marczac bota mais uma semente neste campo de perceptos e afectos.
No
século XXI, ao contrário do que se pensou no passado, um dos temas que mais tem
estado presente em obras artísticas que atingem grande nível de sensibilidade é
a velhice, não a humanidade controlada por máquinas, talvez, porque isto seja
uma grande fatia do que entendemos como real. O mundo visto e sentido por
aqueles que se tornam invisíveis com a passagem do tempo, letras a lápis diante
de uma infalível borracha.
Nena
uma mulher viúva refém das lembranças, recebe migalhas de atenção dos três
filhos: Ana Lúcia, Mário Jorge e o autoritário Celso. Monitoração por meio de
incessantes telefonemas, visitas sem aviso prévio, invasões confundidas com
zelo. A dura inversão de papéis que culmina na decisão em contratar uma
cuidadora para garantir o bem estar materno: A jovem Nina.
O
trabalho de construção narrativo executado pela autora é demonstrado logo no
primeiro parágrafo, com um poder de síntese que coloca o leitor em contato com
o drama da solidão sentida pela protagonista: Amava o marido, mas odiava as rosas. Amava. Amou. Amou era mais
adequado. Julgava não ser mais possível amar o que já não existe. (Pg. 11)
Outro
aspecto da construção textual de Cláudia que chama a atenção é o processo metonímico,
partindo de um objeto ou de uma doença, o leitor é deslocado no tempo,
compreendendo sentimentos e sensações da personagem Nena, tal fato acrescenta
um movimento singular ao livro, pois só permite que o essencial ocupe lugar no
mundo das palavras: A dor no joelho para a ausência de vida, uma desculpa para
o isolamento esquecimento de si enquanto mulher; O Fusca grifado com letra
maiúscula (... originalzinho era um
pedaço vivo do passado. Pg. 15); Os móveis da sala de estar (... carregavam décadas em seus corpos de
madeira e tecido Pg. 37).
Pode o lirismo morrer, quando nasce
todos os dias nos cabelos assustados da campina ou na andorinha sobre o fio do
verão? (Carlos Nejar).
Nina
e Nena nomes-espelho como escreveu o escritor Anderson Fonseca na orelha da
obra, olhar para o espelho sem conflito não é olhar é apenas projetar, como a
bruxa da Branca de Neve. A presença
da vida se dá por meio de duelos, e há maior zona de batalha do que o convívio
com o Outro? : Apesar da impertinência de
Nina, havia sido bom sair do seu tédio costumeiro. (Pg. 45). Com o direito
da solidão roubado, partilhar tira a conotação singular inclusive de fatos
corriqueiros da rotina como a caminhada matinal: Nossa caminhada (Pg. 53).
O
narrador onisciente faz um pacto com o leitor, este só se dá conta quando a
resposta com o não é impossível para aquele que o seduziu com a estória, os
fatos são revelados aos poucos, como pistas abandonadas, esperando por um bom
detetive, exigindo do receptor uma parceria para a construção da obra: Admirava em Nina o prazer que ela tinha nas
novas descobertas, estava sempre receptiva a tudo que a vida lhe oferecia, sem
restrições, sem medos. (Pg. 60).
A
cumplicidade de aulas de volante, o desejo pelo novo direcionado para o antigo
jardim sem as rosas das quais não gostava, com a sua cara, seu jardim e não
mais do finado Nelson, ou melhor: O jardim delas: Gostava do olhar dela, parecia que a lia por dentro. Tinha aprendido a
se sentir à vontade diante daquele olhar. (Pg. 93).
Em
uma época de intolerância é compreensível que muitos enxerguem o romance de
Cláudia como um panfleto que requere ampliação dos direitos dos gays, contudo,
com o olhar que a arte possibilita eis uma estória sobre renascimento,
recuperação do direito de amar que nasce quando a pele que nos envolve é regada
e dela vemos surgir sensações e sentimentos, tal quais os jardins na primavera.
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