sexta-feira, 24 de julho de 2015

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SÔNIA PILLON - MARIÁ MARICÁ

Sim, Mariá Maricá nasceu em berço de ouro. Não propriamente “de ouro”... Digamos que ela veio ao mundo em situação privilegiada, comparativamente à maioria das meninas de onde morava.  Fazia parte de uma das famílias tradicionais de Goiânia. Hoje a gente diria que era de classe média alta. Estudou nos melhores colégios da capital, frequentava as altas rodas. Era a única filha mulher. Nasceu temporona, “rapa do tacho”, lá pelos idos de 1930.

A atendiam em todas as vontades. E como se não bastasse, foi agraciada pela beleza, o que facilitava para ser bem aceita no meio familiar e social. Como resistir a um pedido daquela criaturinha tão graciosa, doce e sorridente?

E quando se sentia  aborrecida com alguém, ou alguma coisa, gritava, batia pé, fazia chantagem emocional e até simulava doença. Se fazia de vítima e invertia tudo, de modo que o outro lado sempre levasse a culpa. Não admitia ser contrariada pelos irmãos e primos, que se irritavam com os xiliques de menina mimada. Em vão tentavam abrir os olhos dos pais e tios. Ninguém acreditava. Incentivavam a personalidade e independência da garotinha. Atribuíam as queixas a ciumeiras de crianças.

“Parem de implicar com a menina! É o jeito dela, não faz por mal... Vocês, que são mais velhos, deveriam entender a pobrezinha... Ela está inconsolável agora, diz que adora vocês e até já esqueceu a briga que tiveram com ela...” Inútil argumentar,  sempre passavam a mão na cabeça dela.

Lembrando de alguns episódios passados, dava para ver que era uma menina muito esperta desde a mais tenra idade. Ardilosa. Pequena ainda, Mariá Maricá fazia valer suas vontades. Era difícil resistir àquelas feições de anjo, ao olhar suplicante e à voz melosa, quando queria algo. Sabia manipular muito bem as pessoas à sua volta.  Aprendeu a dissimular para tirar vantagem. Do tipo que arranha e depois esconde as unhas, sabe como é? Pois é, ela era assim... Fazia amizades por conveniência. Não dava ponto sem nó.
Na escola, era a queridinha dos professores e o terror dos coleguinhas. Na hora do recreio, não admitia perder nas brincadeiras. Quando acontecia, atirava areia no rosto das outras crianças, batia nelas, arrancava seus brinquedos e os atirava no chão, pisoteando. E quando era questionada pelo mau comportamento, fazia cara de choro e jurava de pé junto que não tinha sido ela. Acreditavam, é claro...
Agora, é preciso reconhecer, Mariá era estudiosa. Tinha conduta exemplar em sala de aula e obtinha as melhores notas. Para os professores, era a aluna perfeita. Inteligente, captava rápido o conteúdo e apresentava uma especial habilidade para aprender línguas.  No Ginásio, se vangloriava de ser a mais paquerada da escola, mas tinha um rapaz, o Bernardo, que não gostava do jeito esnobe e arrogante de Mariá. Por ironia do destino, ela gostava justamente dele. Desesperadamente.

Quando terminou o Ginásio, não faltaram pretendentes para a levar ao Baile de Formatura. Eu era o maior amigo dela, que ela fazia de gato-sapato...  Mas ela queria o Bernardo, só o Bernardo! Por isso, se arrumou linda para o baile, decidida a convidá-lo para dançar. E daí que moça não convida? Ela era Mariá Maricá, não se submetia a regras!

E eis que surge Bernardo, acompanhado da Rosa... Atônita, Mariá não conseguia entender como ele escolheu outra pessoa que não fosse ela. “Eu é que deveria estar ali, no lugar dela, dançando com ele! Sou muito mais bonita, rica e inteligente! Ela não passa de uma bolsista pobretona sem graça!”, pensou, despeitada. Abandonou o baile e voltou para casa. Teve um acesso de fúria, pegou todos vestidos do armário e rasgou, um por um. Depois quebrou tudo dentro do quarto. Assustados, os pais chamaram o médico da família às pressas. Ela simplesmente surtou. Não estava acostumada a perder...
Depois disso, foi embora de Campo Grande. Soube depois que a mandaram estudar na Europa e que casou por lá. Voltou três décadas depois, viúva e com dois filhos para o inventário dos bens da família, depois da morte dos pais.

Foi nesse período que ela reviu o Bernardo. Ele acabou se casando com a Rosa e teve três filhos. Numa noite, vi quando a Mariá chegou e estacionou o carro devagarinho, para depois espiar a casa do Bernardo, pelo de fora da janela.  Eu morava na casa do lado e vi quando ela olhou os quatro felizes, às gargalhadas, enquanto jantavam. Deu para ver as lágrimas escorrendo do rosto dela. Ficou alguns minutos ali, escondida atrás da fresta da cortina, antes de enxugar o rosto e se apressar em ir embora. 
Foi a última vez que a vi, de longe. Ela e os filhos partiram no dia seguinte e nunca mais voltaram para essas bandas.

Pois é, foi assim que aconteceu... Naquela época, os Maricá mandavam e desmandavam por aqui... Lá se vão mais de 60 anos, mas eu me lembro de tudinho, tim-tim por tim-tim! Por que só contei agora? É que existem coisas nessa vida que é melhor nem lembrar, para não sofrer...


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