domingo, 6 de março de 2016

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PEÇA TEATRAL UM RELATO PARA A ACADEMIA


A universalidade de um artista só pode ser declarada após muitos anos de sua morte, tal como profetizou o cantor inglês Nick Drake, na canção Fruit tree. Os eventos pós-fim da vida em alguns artistas é que os fazem imortais porque penetram tempos e atmosferas.

Último dia três de junho foi frio e de garoa, como um dia em Praga. Um grupo de nove crianças lembrava a data da morte do escritor Franz Kafka (1883- 1924) e enviavam-lhe cartas. Para onde iam postá-las? Ora, isso nem importa, pois a comunicação de todo grupo era um bate-papo muito franco, por escrito, com as ideias e imagens ressoantes, depois do trabalho que já durava semanas: a leitura pausada e atenta do conto Relato para uma Academia e conhecimento de passagens importantes da biografia do autor. O que for universal sempre conversará conosco em qualquer tempo, de alguma forma. O encontro no teatro, bem no dia do aniversário, foi coincidência, pois o grupo se reuniu durante várias quartas-feiras em trabalhos da oficina teatral, orientada e dirigida pela professora de Artes, Rafaela Fernandes, para encenação baseada no conto presente no livro Um Médico Rural.


As oficinas de experiências e sensibilização foram guiadas por: leituras e comentários textuais da história de Peter, que fora, em certo momento da vida, um macaco capturado e, no tempo do conto é um loquaz palestrante; audição de músicas clássicas e tangos para exercícios de desenvoltura corporal no palco, a fim de representar uma Dança das Jaulas e participações de pessoas que dirigissem algum relato àquele grupo de crianças, para que elas soubessem quais apropriações do universo complexo de Kafka os convidados haviam vivido até ali.
As apropriações acontecem quando um texto, um assunto, um tema sai de uma distância intocável e abstrata e pede para fazer sentido para a vida e na vida de alguém. No caso de Kafka, os temas dos conflitos com a autoridade e consciência pragmática do pai, que, de forma alguma, valorizou a vontade do filho ser escritor, fazem sentido para qualquer jovem ou pré-adolescente que, naturalmente, acolhe algum conflito com os pais ou figuras responsáveis por lhe guiarem um pouco ou por determinados tempos na Vida. Os jovens faziam comparações entre a família Kafka e as suas e opinavam sobre os sofrimentos do escritor nas percepções dele de deslocamentos e estranhezas em relação ao trabalho, à família e ao mundo.
Outro trabalho de assenhoramento de partes de Kafka foram as entrevistas a pessoas aleatórias da escola, fundamentadas na vida ou na obra. As entrevistas compuseram o que belamente se nomeou Tribunal de Si. Referência eficaz ao romance O Processo. Em caravana, de câmaras à mão, os alunos abordavam para que se respondessem às perguntas:
Como você aprendeu a ser humano?;
Por quantas metamorfoses você já passou?;
Existe um animal dentro de você? Qual?;
Os animais se dividem em quais tipos?;
O que é Liberdade?
Aliás, a pergunta sobre em quais tipos se dividem os animais e suas opções de respostas apareceram no texto teatral e vieram de outros universais como Jorge Luis Borges em seu ensaio O Idioma Analítico de John Wilkins e Michel Foucault em sua brilhante análise do texto de Borges da qual, depois de rir-se muito sobre as divisões dos animais, em quais categorias eles se dividem, nasceu o livro As Palavras e as Coisas-uma Arqueologia das Ciências Humanas.

                            Este livro [As palavras e as coisas] nasceu de um texto de Borges. Do riso que com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento - do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia -, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetra, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas’. No deslumbramento dessa taxionomia, o que de súbito atingimos, o que graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade de pensar isso. (FOUCAULT, 1992, p.5)
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É bonito ler a constatação de Foucault, de que ele não busca a história das ciências humanas não em sua crescente perfeição, mas história dá lugar à palavra arqueologia porque o seu olhar percorre experiências de seres humanos, localizadas em tempo e espaço, mas são experiências que não comportam em nenhum momento em sua progressão no tempo, como se pode imaginar, melhoria ou aperfeiçoamento, mas, antes, a de suas condições de possibilidade (...).



E lá foram as crianças, nos dias 27 e 28 de Outubro de 2015, no teatro Luiz Gonzaga, localizado no CEU Vila Curuçá, com a força das palavras escritas por Franz Kafka  evidenciar a claustrofobia de rótulos e classificações em que nós humanos nos encontramos. Possibilita questões: onde e como encontrar uma saída na liberdade? Precisamos de saída se somos livres? O que nos trouxe para a condição de inadequação do humano?
O ritmo das palavras ditas pelos atores ganhou um forte aliado na trilha sonora composta e executada pelo guitarrista Henrique Lopes, criando uma paisagem sonora que comprimia os presentes e como o flautista da fábula, hipnotizava-os para seguirem direto para um não-lugar. Reconhecemos a classificação de coisas no mundo não porque são as melhores, há outras classificações que podem ser feitas, conforme interesses, nem sempre os mais altruístas, de verdade, nunca os altruístas e todas as classificações são possíveis no lado opaco da escrita. O Direito, a figura da Lei são também não-lugares para a Verdade. A verdade também age conforme as possibilidades: é um dos gritos da obra de Kafka.


A inserção dos vídeos das entrevistas com os questionamentos (O que é liberdade? Qual foi a última vez que você gritou?), além de acrescentarem um elemento moderno na obra, criaram a sensação de haver outro elemento dentro do mundo para onde os que estavam fora deveriam migrar.
O cenário minimalista: a mesa e a cadeira de Franz Kafka e resmas espalhadas, ele escreve compulsivamente à direita do palco; à esquerda, a cadeira docente, imponente, com luz a salvando da penumbra: é a racionalidade, talvez, o pragmatismo de Hermann Kafka. O ambiente de palco foi desenvolvido por duas cenógrafas, que orientaram também o figurino: Cris Amorim e Angélica Andrade. Cris desenvolveu, inclusive, os desenhos dos folders: Peterhot, vestido em seu costume preto e chapéu coco, como o de seu criador, segurando gaiola com pequeno símio, tal qual ele.
Pequenos espelhos pendurados, nos quais ninguém se admira. É como se não houvesse um ser para construir uma imagem inteira. A dança das jaulas, nela há o reflexo do espelho, mas não para os atores e sim para a plateia. Uma lição para os viventes.


Texto escrito em parceria com Otacília Sales.

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