A
universalidade de um artista só pode ser declarada após muitos anos de sua
morte, tal como profetizou o cantor inglês Nick Drake, na canção Fruit tree. Os eventos pós-fim da vida
em alguns artistas é que os fazem imortais porque penetram tempos e atmosferas.
Último
dia três de junho foi frio e de garoa, como um dia em Praga. Um grupo de nove
crianças lembrava a data da morte do escritor Franz Kafka (1883- 1924) e
enviavam-lhe cartas. Para onde iam postá-las? Ora, isso nem importa, pois a
comunicação de todo grupo era um bate-papo muito franco, por escrito, com as
ideias e imagens ressoantes, depois do trabalho que já durava semanas: a leitura
pausada e atenta do conto Relato para uma
Academia e conhecimento de passagens
importantes da biografia do autor. O que for universal sempre conversará conosco em qualquer tempo, de
alguma forma. O encontro no teatro,
bem no dia do aniversário, foi coincidência, pois o grupo se reuniu durante
várias quartas-feiras em trabalhos da oficina teatral, orientada e dirigida
pela professora de Artes, Rafaela Fernandes,
para encenação baseada no conto presente no livro Um Médico Rural.
As oficinas de experiências e sensibilização
foram guiadas por: leituras e comentários textuais da história de Peter, que
fora, em certo momento da vida, um macaco capturado e, no tempo do conto é um
loquaz palestrante; audição de músicas clássicas e tangos para exercícios de
desenvoltura corporal no palco, a fim de representar uma Dança das Jaulas e participações de pessoas que dirigissem algum
relato àquele grupo de crianças, para que elas soubessem quais apropriações do
universo complexo de Kafka os convidados haviam vivido até ali.
As apropriações acontecem quando um texto, um
assunto, um tema sai de uma distância intocável e abstrata e pede para fazer
sentido para a vida e na vida de alguém. No caso de Kafka, os
temas dos conflitos com a autoridade e consciência pragmática do pai, que, de
forma alguma, valorizou a vontade do filho ser escritor, fazem sentido para
qualquer jovem ou pré-adolescente que, naturalmente, acolhe algum conflito com
os pais ou figuras responsáveis por lhe guiarem um pouco ou por determinados
tempos na Vida. Os jovens faziam comparações entre a família Kafka e as suas e
opinavam sobre os sofrimentos do escritor nas percepções dele de deslocamentos
e estranhezas em relação ao trabalho, à família e ao mundo.
Outro
trabalho de assenhoramento de partes de Kafka foram as entrevistas a pessoas
aleatórias da escola, fundamentadas na vida ou na obra. As entrevistas compuseram
o que belamente se nomeou Tribunal de Si.
Referência eficaz ao romance O Processo.
Em caravana, de câmaras à mão, os alunos abordavam para que se respondessem às
perguntas:
Como você aprendeu a ser humano?;
Por quantas metamorfoses você já
passou?;
Existe um animal dentro de você?
Qual?;
Os animais se dividem em quais
tipos?;
O que é Liberdade?
Aliás,
a pergunta sobre em quais tipos se dividem os animais e suas opções de respostas
apareceram no texto teatral e vieram de outros universais como Jorge Luis
Borges em seu ensaio O Idioma Analítico de John Wilkins e Michel
Foucault em sua brilhante análise do texto de Borges da qual, depois de rir-se
muito sobre as divisões dos animais, em quais categorias eles se dividem,
nasceu o livro As Palavras e as Coisas-uma Arqueologia das Ciências Humanas.
Este livro [As palavras e as coisas] nasceu de um
texto de Borges. Do riso que com sua leitura, perturba todas as familiaridades
do pensamento - do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia -,
abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata
para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo,
nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita ‘uma certa
enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘os animais se dividem em: a)
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)
sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente
classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com
um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetra, m) que acabam de quebrar a
bilha, n) que de longe parecem moscas’. No deslumbramento dessa taxionomia, o
que de súbito atingimos, o que graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto
exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade de
pensar isso. (FOUCAULT, 1992, p.5)
.
É
bonito ler a constatação de Foucault, de que ele não busca a história das
ciências humanas não em sua crescente perfeição, mas história dá lugar à
palavra arqueologia porque o seu olhar percorre experiências de seres
humanos, localizadas em tempo e espaço, mas são experiências que não comportam
em nenhum momento em sua progressão no tempo, como se pode imaginar,
melhoria ou aperfeiçoamento, mas,
antes, a de suas condições de possibilidade (...).
E
lá foram as crianças, nos dias 27 e 28 de Outubro de 2015, no teatro Luiz
Gonzaga, localizado no CEU Vila Curuçá, com a força das palavras escritas por
Franz Kafka evidenciar a claustrofobia
de rótulos e classificações em que nós humanos nos encontramos. Possibilita
questões: onde e como encontrar uma saída
na liberdade? Precisamos de saída se somos livres? O que nos trouxe para a condição
de inadequação do humano?
O
ritmo das palavras ditas pelos atores ganhou um forte aliado na trilha sonora
composta e executada pelo guitarrista Henrique
Lopes, criando uma paisagem sonora que comprimia os presentes e como o
flautista da fábula, hipnotizava-os para seguirem direto para um não-lugar.
Reconhecemos a classificação de coisas no mundo não porque são as melhores, há
outras classificações que podem ser feitas, conforme interesses, nem sempre os
mais altruístas, de verdade, nunca os altruístas e todas as classificações são
possíveis no lado opaco da escrita. O Direito, a figura da Lei são também
não-lugares para a Verdade. A verdade também age conforme as possibilidades: é
um dos gritos da obra de Kafka.
A
inserção dos vídeos das entrevistas com os questionamentos (O que é liberdade?
Qual foi a última vez que você gritou?), além de acrescentarem um elemento
moderno na obra, criaram a sensação de haver outro elemento dentro do mundo
para onde os que estavam fora deveriam migrar.
O
cenário minimalista: a mesa e a cadeira de Franz Kafka e resmas espalhadas, ele
escreve compulsivamente à direita do palco; à esquerda, a cadeira docente,
imponente, com luz a salvando da penumbra: é a racionalidade, talvez, o
pragmatismo de Hermann Kafka. O ambiente de palco foi desenvolvido por duas
cenógrafas, que orientaram também o figurino: Cris Amorim e Angélica Andrade. Cris desenvolveu, inclusive, os
desenhos dos folders: Peterhot, vestido em seu costume preto e chapéu
coco, como o de seu criador, segurando gaiola com pequeno símio, tal qual ele.
Pequenos
espelhos pendurados, nos quais ninguém se admira. É como se não houvesse um ser
para construir uma imagem inteira. A dança das jaulas, nela há o reflexo do
espelho, mas não para os atores e sim para a plateia. Uma lição para os
viventes.
Texto escrito em parceria com Otacília Sales.
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