Andréia.
Estava cansada dos mesmos gestos. Sempre os mesmos não mudavam. Desde que se conhecia como adulta, como gente, vinha fazendo sempre os gestos de sempre, repetitivos. E não tinha como comprovar se eram verdadeiros ou apenas gestos de outra pessoa. Aterrorizava-se com esses pensamentos. Se fossem verdadeiros não tinha o porquê ficar apavorada, o que a surpreendia terrivelmente é que não podia comprovar se eram verdadeiros ou não. Em sua opinião achava que não eram verdadeiros, que representava num grande teatro. Mas nesse caso, quem lhe dera esse imenso script que não tem fim? Quem era o diretor dessa parafernália bufa? Talvez estivesse até dentro de uma imensa televisão, como Truman* vivendo sem saber uma vida fictícia. Ou quem sabe fosse Hilde** ou Sofia?** Vivendo uma grande história presa num livro levando-a a se sentir palhaça das palavras? Impossível!
Estava cansada dos mesmos gestos. Sempre os mesmos não mudavam. Desde que se conhecia como adulta, como gente, vinha fazendo sempre os gestos de sempre, repetitivos. E não tinha como comprovar se eram verdadeiros ou apenas gestos de outra pessoa. Aterrorizava-se com esses pensamentos. Se fossem verdadeiros não tinha o porquê ficar apavorada, o que a surpreendia terrivelmente é que não podia comprovar se eram verdadeiros ou não. Em sua opinião achava que não eram verdadeiros, que representava num grande teatro. Mas nesse caso, quem lhe dera esse imenso script que não tem fim? Quem era o diretor dessa parafernália bufa? Talvez estivesse até dentro de uma imensa televisão, como Truman* vivendo sem saber uma vida fictícia. Ou quem sabe fosse Hilde** ou Sofia?** Vivendo uma grande história presa num livro levando-a a se sentir palhaça das palavras? Impossível!
Nisso
deparou com seu vulto refletido ao passar em frente da vitrine. Parou
alucinada, o coração batia mais acelerado. Era ela? Ela refletida na vitrine?
Não podia ser! O que via era uma figura completamente diferente do que sentia.
Tudo parecia ser idêntica, mas lá, em algum lugar dentro de si dizia que não.
Como pode ser uma coisa dessas? De mais a mais, a imagem refletida parecia ser
do sexo masculino. Que coisa arrepiante, disse virando-se a esquerda e tomando
seu caminho costumeiro. Tudo nela era costumeiro, nada era diferente.
Andréia
seguiu na sombra da dúvida se esparramando pela calçada. Parou no farol.
Precisava atravessar a rua. Lembrou que tinha que sacar dinheiro. Ela que
precisava de dinheiro ou seria outra pessoa? E quem seria essa pessoa que não
era ela? Que coisa absurda pensar nisso, sacudiu a cabeça como dissesse estar
pouco ligando para tudo isso. Como poderia uma pessoa viver dentro dos seus
princípios morais, religiosos tendo uma confusão dessas na mente? Estaria
enlouquecendo? Não, claro que não. Senti-se mais lúcida do que nunca, apenas é
que na vida surgem perguntas que, a primeira vista, não podemos responder. E
essa confusão de ser ela ou não, ou ser uma personagem fictícia, - lembrou da
imagem refletida na vitrine - ou ser masculino a aterrorizava. Segundo os
filósofos, o ser tem dentro de si o masculino e o feminino. Será que nela está
aflorando o seu lado masculino? Credo! Que coisa horrível de se pensar.
Atravessou
a rua assim que o sinal abriu. Quando criança tinha a mania de brincar de
mocinho e bandido com a molecada da rua e, invariavelmente, era designada para
ser o xerife na brincadeira. Não dava importância ao fato de fazer um papel
masculino, sabia que era só uma brincadeira. Na brincadeira é que está o
reflexo do que somos não é o que diz o ditado popular? Quer dizer, já na
infância demonstrava tendência masculina. Nunca se sentira masculinizada e não
se sentia masculinizada ao pisar a calçada do outro lado da rua. O masculino a
atraia sexualmente, alimentava até essa atração não deixando morrer. Então
porque esse tormento? O que isso queria lhe dizer? Que realmente possuía dois
lados? Um lado feminino que se escandalizava ao descobrir seu lado masculino e,
um lado masculino que parecia querer se sobrepujar ao feminino? Não, não
deixaria isso acontecer. Não era um monstro, não era doente. Tinha aversão por
pessoas que era uma coisa e queriam ser outra. Fugia de homens afeminados e de
mulheres masculinizadas. Via como desvio de personalidades, não aceitação do
corpo chegando a ponto de transformá-lo no que não eram. Tornavam-se bichos, um
ser bizarro que não tinham espaço dentro da sociedade, fugia deles, se pudesse
não os veria em lugar nenhum. Preconceito? Até fosse, mas era um preconceito
nada pejorativo, era mais uma não aceitação dos fatos.
Entrou
na padaria. O caso é que isso tudo ia além do que ela imaginava. Muito além.
Não era só uma simples transformação de sexo físico, não era. O que lhe dava a
impressão que ela, Andréa não existia, que ela poderia ser outra pessoa que não
fosse ela mesma. Que a Andréa era apenas uma imagem formada pela mente, que o
pão que no momento estava comprando, não era pão no sentido concreto do objeto.
Não deixava de ser pão, mas era um pão inexistente, apenas imaginário. Credo!
Baboseira, como pode pensar nessas coisas absurdas e surrealistas! Constatou
que devia parar com as leituras. Estava sendo influenciada. Por outro lado
achava que não deveria, elas estavam abrindo a mente, mostrando um mundo
diferente, obrigando-a pensar. E era do que precisava para sentir-se viva.
Saindo
da padaria recebeu o sol no rosto revelando uma cena aterrorizante. Ao ouvir a freada
do carro, seguida de um baque surdo, viu sua atenção despertada para o
inusitado. A pessoa que a sua frente tomou a iniciativa em atravessar a rua,
assim dificultando-a, retardou que fosse atropelada. O que mais a surpreendeu é
que a mulher tinha comprado as mesmas coisas que ela. O que só descobriu ao ver
a mercadoria esparramada no meio da rua. Em seguida, numa intuição feminina,
olhou para o corpo da mulher estendida debaixo das rodas do carro. Soltou um
grito. Era ela que estava ali, deitada, olhando para ela. Rapidamente deu as
costas e seguiu seu caminho.
Ao
fechar a porta do apartamento, suspirou aliviada. Sofria de alucinação, não
podia ser. Na cozinha bebeu um gole de água. Acalmou-se. Voltou para sala.
Pegou as sacolas e erguendo a cabeça deparou com sua imagem refletida no
espelho. Ali estava ela, Andréa e não aquela que fora atropelada. Jogou as
sacolas com as mercadorias em cima da mesa da cozinha e dirigiu-se ao quarto.
Abriu a porta do guarda-roupa. Queria ver-se inteira no grande espelho interno.
Não, não era eu debaixo daquele carro, disse aliviada. Essa que está aqui no
espelho reflete o que eu sou. A Andréa, morena de estatura baixa, cabelos lisos
pretos, que se parece com a atriz Irène Jacob***, não posso ser outra, se
convenceu finalmente.
Passou
o resto do dia com a sensação de que não vivia onde estava. Que seu mundo
estava ao contrário, que havia outra vivendo o que ela vivia. Foi com muito
custo que a noite conseguiu pegar no sono.
Lentamente surgia no horizonte, uma pequena
luz. Os olhos doíam. Precisou firmar os olhos até que se acostumasse com a luz.
Ouvia vozes, não muito nítidas, pareciam sussurradas:
-Ele está
acordando.
-Calma, minha
senhora.
- Como posso
ficar calma...
- Eu sei. Ele não
corre mais perigo.
O que? Não corre
mais perigo? O que me aconteceu, perguntou sem conseguir mover os lábios.
- Calma, meu bem.
Você sofreu um terrível acidente e agora está bem.
Acidente? Como? O
que faço aqui? Estou num hospital? Como se lesse a sua mente, a mulher se
debruçou por cima dela e disse:
- Calma, meu filho. Você foi atropelado, mas nada de grave. Está no hospital há um mês em coma.
- Calma, meu filho. Você foi atropelado, mas nada de grave. Está no hospital há um mês em coma.
Coma! Hospital!
Filho! O que essa louca está dizendo? Ela não compreendia nada o que se
passava. Queria sair dali. O corpo inteiro doía. Seu braço estava preso pelo
tubo do soro, não podia se mexer. Ergueu o corpo, precisava ficar sentada.
-Enfermeira, me
ajude aqui, gritou o médico.
Aplicaram uma
injeção que a fez dormir novamente.
-Escute, vamos conversar calmamente.
-Calmamente! Como
se não sei o que vocês fizeram comigo.
-Não fizemos nada, apenas o curamos das feridas e machucados.
- Merda! O que realmente aconteceu e, por favor, pede para essa louca parar de chamar de filho. Não sou filho de ninguém, aliás nem mãe tenho.
-Tudo bem. Enfermeira leve-a daqui
-Não fizemos nada, apenas o curamos das feridas e machucados.
- Merda! O que realmente aconteceu e, por favor, pede para essa louca parar de chamar de filho. Não sou filho de ninguém, aliás nem mãe tenho.
-Tudo bem. Enfermeira leve-a daqui
-Mas Doutor, é
meu filho.
-Eu sei, depois
falo com a senhora.
Saíram ela e a
enfermeira.
- E outra coisa,
se acalme, pare de falar palavrão que não resolve nada, senão vou ser obrigado
a interná-lo.
-Está bem,
doutor.
-Isso assim está
melhor.
-Explique o que aconteceu
realmente, doutor.
- Não há o que
explicar. Você chegou aqui todo ferido por causa do atropelamento e, entrou em
coma por mais de um mês.
-Mais de um mês?
-Sim, mais de um
mês...
-Mas não é isso
que quero saber.
-O que você quer
saber, me diga.
-Doutor, não sou
homem, sou mulher, como estou transformada desse jeito?
- Não sei do que
está falando. Foram feito vários exames em você e foi constado tudo normal, não
há nada em você de anormal.
- Anormalidade não está nos olhos de quem vê, mas nos olhos de quem sente.
- Anormalidade não está nos olhos de quem vê, mas nos olhos de quem sente.
-O que foi que
disse?
-Nada não, estava
pensando alto.
- Você entrou em
estado de choque e não pudemos reverter o teu estado.
-Grande médico
que você é...
-Escuta uma
coisa, fizemos de tudo para salvá-lo, conseguimos e agora não venha com ironia
pra cima de mim não, está certo?
-Desculpe, doutor, é que não estou entendo nada.
- O que não está entendo.
-Desculpe, doutor, é que não estou entendo nada.
- O que não está entendo.
- É que um dia
sou mulher, vou dormir, e quando acordo sou homem, que raios são isso, doutor?
- Não sei do que está falando. Você entrou
aqui como homem e como homem vai sair. Se há algo misterioso nisso tudo,
recomendo procurar um psiquiatra.
- Psiquiatra é
para louco.
- E se você não
se acalmar e procurar entender o que lhe acontece é isso que vão taxar você:
louco. E sabe para onde será levado.
- Manicômio.
- Manicômio.
- Isso mesmo,
trate de se acalmar e pense naquela pobre senhora que está lá fora te
esperando. Ela passou todas as noites ao seu lado segurando sua mão.
- Mas aí que está
doutor. Não sei quem é ela, nunca a vi nem mais magra e muito menos mais gorda.
Não tenho mãe, não tenho ninguém, vivo sozinha.
- Pelo menos
agora você tem alguém que vai cuidar de você.
- Mas, doutor... Ela vai me tratar como filho dela, e não sou homem, sou mulher e, por falar nisso, onde está meus seios, minha vagina...
- É, acho bom você procurar um psiquiatra.
- Mas, doutor... Ela vai me tratar como filho dela, e não sou homem, sou mulher e, por falar nisso, onde está meus seios, minha vagina...
- É, acho bom você procurar um psiquiatra.
Procurar um psiquiatra, disse o doutor. O sol passando pelo vidro da janela do quarto do hospital lambia seus pés enfiados num chinelo masculino. Vestia um pijama de seda com bolinhas pretas. Não se sentia bem dentro do pijama, preferia mais uma camisola. Que droga! O que lhe tinha acontecido? Não se lembrava de nada.
Em pé olhava para
o descampado que vinha logo depois do jardim. O dia estava ensolarado,
convidativo para um passeio. No entanto não quis sair do quarto. Já estava a
muito tempo apático sem vontade de se mexer. O médico, as enfermeiras, sua mãe
aconselhavam que saísse que procurasse algo para se entreter, sair da depressão
que se encontrava desde que acordara do pequeno coma que tivera.
É! Como sair
dessa apatia quando se descobre que não é mais a mesma pessoa? Como não se
sentir deprimida quando se sabe que não é mais a Andréa que sempre fora e, que
agora era outra Andréa. Não, ela nunca deixará de ser feminina. Via sua imagem
refletida no vidro da janela e não conseguia entender, compreender, imaginar
como e o que lhe acontecera.
Foi ao banheiro.
Deixou o roupão cair lentamente aos seus pés em frente ao espelho. Olhou para o
seu rosto. Era o mesmo, nada mudara, mas... Crispou a mão e passou a unha
arranhando aquele peito que não era mais o seu. Cadê os meus seios, duros e
firmes, prontos a ser saboreado por lábios gulosos, onde está ele? O que via
agora era um peito masculino... Devagar abaixou os olhos, cadê aquela barriga
com penugem suave e bonita, que deixava os homens embriagados, cadê? Onde
estava a vagina com lábios carnudos escondendo a fenda do prazer, onde estava?
Agora no sei lugar via um pênis horrível, que ela sentia vontade em arrancá-lo
a unha. E as coxas roliças? O que via era umas coxas peludas, fortes, de homem.
Ficou de perfil. O mesmo acontecera com as nádegas, se afinaram... Como não
ficar deprimida se ela não era mais a bela Andréa? Agora era ele, o belo
Andréa. Sentindo se estourar por dentro,
se jogou na cama soluçando desesperadamente. Nisso bateram na porta.
- Entre, gritou.
Era a enfermeira com um
embrulho que depositou em cima da cama dizendo:
- Aqui estão suas
roupas, seus documentos, terá alta hoje.
- Está bem,
obrigado.
Assim que a enfermeira saiu
fechando a porta, Andréa abriu o pacote. Camisa, calça jeans, tênis, a carteira
com os documentos... Abriu a carteira... Olhou a identidade: Andréa Figueirada
Melam, sexo: masculino. Não pode ser, pensou jogando a carteira em cima da
cama. O que lhe tinha acontecido?!!!!!
Andréa sentou ao lado da mulher que se dizia mãe dela. Não sabia o que dizer. Ficou por instantes em silêncio olhando para aquela mulher que ela não sabia quem era.
Andréa sentou ao lado da mulher que se dizia mãe dela. Não sabia o que dizer. Ficou por instantes em silêncio olhando para aquela mulher que ela não sabia quem era.
- Escuta
meu filho...
- Por
favor, não me chame de filho, não sou seu filho.
- Está
bem, disse a mulher engatando a marcha e pondo o carro em movimento.
- Olha, se eu topei sair do
hospital foi porque estou confusa, não sei o que aconteceu, não tenho para onde
ir, estou sozinha e, até que eu consiga lembrar o que me aconteceu, aceito sua
ajuda, mas, por favor, não me chame de filho.
- Entendo que
esteja confuso, mas não acha que me é difícil não chamá-lo de filho?
- Não sei e nem
quero saber.
- Obrigada pela
sinceridade.
- Desculpe, é que está sendo duro para
mim.
- E para mim não
está?
- Não foi você
que foi dormir como mulher e acorda no outro dia como homem.
- Não sei do que
está falando.
- É pouco lhe
importa o sofrimento dos outros.
- Realmente, não
me importo com o sofrimento dos outros, só me importo com o sofrimento do meu
filho.
- Mas não sou seu filho já lhe
disse, gritou Andréa.
Numa freada
brusca levantando fumaça e cheiro de pneu queimado, ela desesperada parou o
carro no meio da rodovia.
- Até agora você
falou isso e aquilo. Espere, agora é minha vez me deixe falar. Será que não
acha que não estou sofrendo? Também não entendo o que está acontecendo e muito
menos o que está acontecendo com você. Apenas sei que meu filho saiu não sei
para fazer o que e, dali a pouco alguém vem me avisar que ele foi atropelado.
Fico com ele mais de um mês no hospital entre a vida e a morte, e quando ele
volta do coma, berra as quatro estações que não é meu filho, que é outra
pessoa, que é uma mulher, vá à merda. To cansada. Se quiser ficar deixe-o
tratá-lo como filho, se não quiser saia do carro.
Andréa, confusa
não esperava a enxurrada de palavras da mulher que se dizia sua mãe. Espantada
ao ver que ela chorava em silêncio, segurando a dor que brotava do peito.
Sentiu vontade de abraçar aquela figura miúda, cabelos grisalhos, esticou a mão
e, indecisa não completou o gesto.
- Olha... Mãe... Quer dizer... Senhora?
- Olha... Mãe... Quer dizer... Senhora?
- Ivone.
- Dona Ivone, me abrace,
acho que estamos precisando do apoio uma da outra.
E abraçadas
ficaram por um tempo sem se preocuparem com mais nada.
Ao entrar no
quarto, teve a impressão de já ter estado ali e ao mesmo tempo de algo
desconhecido, de algo que ela já tivesse passado, mas não como Andréa homem, e
sim, como Andréa mulher. A vida é cheia de duplicidades que não conhecemos,
tinha lido em algum lugar.
- Andréa, o seu quarto ficou como estava ao ser hospitalizado, disse Ivone.
- Andréa, o seu quarto ficou como estava ao ser hospitalizado, disse Ivone.
Andréa, assim
que sua suposta mãe fechou a porta, pensou em cair na cama e dormir por quanto
tempo fosse necessário. No entanto, a sensação que sentia despertou sua mente
deixando-a excitada. Num relancear de cento e oitenta graus, constatou:
realmente que o quarto era de homem. Não havia nada ali que demonstrasse a mão
feminina. O quarto em si não estava desarrumado. Havia sim, algumas peças
jogadas aqui e ali, na maioria o quarto estava impecável. Viam-se nas paredes pôster
de várias procedências, livros na estante, no chão, CDs empilhados em cima do
aparelho de som. Leu algumas lombadas de alguns livros, nada de interessante, o
que chamou sua atenção foi o livro que estava aberto em cima do criado mudo: O
Mundo de Sofia. Não podia ficar num lugar que não era seu lugar. Todas as
coisas desde a mais ínfima até a maior têm seu lugar na vida, disse ao
sentar-se na cama.
Já não havia nela mais nenhum
sentimento de revolta, de repugnância ao que lhe acontecera, nem do corpo que
não era o seu. Parecia que tinha desabado por cima dela um balde de água fria,
deixando-a leve, pouco se importando com tudo. Levantou-se, foi até a janela. O
sol continuava sendo pisados por pés despreocupados da sua intensidade. Reparou
que uns iam e outros vinham.
De repente, algo
chamou sua atenção. Viu saindo da padaria uma moça, quase da sua idade, carregando
um embrulho pardo, talvez tivesse comprado pão. Pão... Lembrava de algo. Nesse
momento seu pensamento foi desviado por uma freada e um grito. O veículo parou
quase em cima da moça que, assustada deixou cair o embrulho esparramando todo o
conteúdo no asfalto. Sim, foi isso o que aconteceu! Saiu correndo.
- Andréa, o que foi? Aonde você vai?
- Andréa, o que foi? Aonde você vai?
Não deu atenção.
Abriu a porta da rua e reviu toda cena. Tinha ido comprar pão e, ao sair da
padaria, uma pessoa passou por ela, quase a derrubando, Reparou que antes de
ser atropelada, virou o rosto e olhou bem para ela. Horrorizada constatou: Eu
não sou o que sou, eu sou projeção do que sou. Compreendeu. O que estava vendo
era uma cena falsa, isto é, tudo era falso, até ela, nada era o que parecia
ser. Nada, disse para si mesmo. Cabisbaixa, entrou em casa. Ao subir as escadas
deparou com Ivone.
- O que vai fazer?
- O que vai fazer?
- Não tem nada
para ser feito. O que feito está não há como desfazer ou, o que é pior,
refazer.
Entrou no quarto.
Abriu o livro que estava no criado mudo, escolheu uma página ao acaso e leu:
nem tudo o que vemos, é o que os olhos vêem, nem tudo é concreto. Nunca
acredite no que vê, lê ou ouve, pois sua mente poderá lhe enganar.
Fechou o livro.
Fechou a vida, a sua história.
pastorelli
*Truman
- personagem do filme: O show de Truman.
**Hilde
e Sofia - personagem do livro O Mundo de Sofia.
***Irène
Jacob – personagem do filme, A dupla vida de Veronika.
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