domingo, 1 de maio de 2016

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Pequenas histórias 216.

Por duas horas



Por duas horas seguidas o branco invade seus olhos castanhos claros. A mente fervilhando de letras e palavras confusas e desconexas, não consegue imprimir sua flexibilidade no papel branco eletrônico. A audição invadida por sonoros palavrões como merda jogada no ventilador é expelida em várias direções. O sol por entre as tiras amarelas das cortinas expulsa a temperatura dos corpos sonolentos obrigados a viverem doloridas sobrevivências.
Descobre a falta de veemência nas palavras. Procura o dicionário como apoio, mas só encontra palavras conhecidas ou, talvez uma ou outra desconhecida e, para isso é preciso ser audacioso, ter fibra para enfrentar a gramática entre as linhas da vida. Assim mesmo se arisca sem pejo lançando suas ideias. Aos tropeções segue o caminho colhendo aqui e ali pequenas migalhas de agradecimento que se incorpora ao currículo artístico criativo.
Pensou várias vezes jogar os amarelecidos papéis de cima do Viaduto do Chá inundando o Vale do Anhangabaú de palavras tortas, frustradas e sem sentido. Ocasiões houve em que pensou se jogar numa queda livre e despreocupada de qualquer sentido que não fosse além da vida. Mas isso para ele era uma forma nada adequada em acabar com o que vinha construindo. De mais a mais, era contra os seus princípios. Poderia, e foi o que fez acabar literariamente falando, com tudo o que preocupasse o seu fazer.
E revelou-se um covarde todas as vezes que ficou em pé na amurada do Viaduto. Não conseguiu nem ficar três minutos olhando o lá embaixo por onde passavam veículos despreocupados com o que acontecia em cima. Seu estômago se entortava para o lado puxando-o a descer. Sentia a ardência subir pela garganta lançando ao chão ladrilhado da calçada do viaduto, a massa gosmenta do seu interior. Envergonhado, procurava sair o mais rápido possível, se esgueirando por entre os olhos assustados dos transeuntes que não entendiam o que estava acontecendo. Desistiu dessa prática de sadismo.
Depois de algumas tentativas, desistiu do intento, passou a considerar o chão que pisava valioso demais para deixá-lo.
E, foi assim, que descobriu que era realmente um tremendo covarde.


Pastorelli

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