domingo, 9 de outubro de 2016

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Pequenas histórias 246

Pavão misterioso



Chove. Pronunciava a palavra pausadamente olhando pela janela. Chove. Não ousava sair. E porque deveria sair? Não queria passar vexame. Não conseguiu desenvolver o protetor. Todos tinham o seu. Ele não. Tinha que usar guarda-chuva, capa e galocha. E quando isso acontecia sentia-se envergonhado, observado pelas pessoas como um parasita. Era um marginalizado por causa disso. Desde que se conhecia como gente, nunca houve um dia sem chuva. Diziam os antepassados que houve épocas de sol, de verão onde as pessoas podiam quase andar nus. Se não fosse pelo protetor que foi desenvolvido a partir de uma combinação genética e a natureza, descoberta por um cientista, o que possibilitou todos se movimentar livremente, menos ele e, talvez, se não houvesse o protetor o planeta estaria hoje desabitado.
Do quarto andar, a massa humana locomovendo-se de um lado para o outro era insignificante, não pertencia àquela caterva ignorante, sem um propósito, a não ser, viver seus dias infindáveis. Enquanto eles viviam a eternidade absoluta, ele vivia o tempo passando na carne, nas veias intumescidas, nos movimentos envelhecidos. Sentia asco, horror, ódio por todos eles. Zumbis do progresso mesquinho e infinito.
Ninguém mais nascia. Não havia mais nascimento. Não havia mais grávidas. O protetor, por uma razão mal explicada, deixou as mulheres estéreis e os homens impotentes, por outro lado, deu a eles a fonte da juventude, não envelheciam, não morriam. O que ele via pela janela do quarto andar é o que seria daqui a mil anos. Não sabia se isso era bom para ele que, lentamente envelhecia, ou era ruim. Eles ainda não atinaram com o que acontecia. Ainda embebidos pela alegria do viver sempre na eternidade, não vislumbravam o futuro de monotonia absoluta. Se não há renovação não há enriquecimento de espécie alguma.
Logicamente que ele, observando a caterva lá embaixo na rua constantemente molhada pela água meio ácida, - já fora mais ácida, matava os despreparados – desejava ser igual. A anormalidade traz prejuízo moral e intelectual aprisionando-o a margem da vida. Estava cansado de ser escorraçado. Não podia nem sair para almoçar. Fizeram um sistema de entrega no qual não precisava ir ao restaurante, ou mesmo, a lanchonete. Tinha que ficar a mercê deles. Merda! Queria ser normal. Queria ser igual a eles.
Porque a combinação médica prescrita não dera resultado nele? Fizera tudo, segundo a recomendação médica e, nada resultara, a não ser, a penugem que nascia em suas costas.
Abriu a porta do guarda-roupa onde tinha um espelho grande. Ficou nu. Reparou que não era só nas costas que lhe nasciam penas. Elas nasciam pelo corpo todo. Mexeu os ombros. A asa toda branca mexeu movendo o ar do quarto. Estou virando um pássaro? Chegou ao parapeito da janela. Ficou de cócoras. Olhou para baixo. Tudo continuava na mesmice de sempre. Bateu as asas. Sentiu o corpo se elevar. Tomou coragem. Jogou-se no vazio. Começou a cair. Sacudiu os ombros. A asa num sobe desce o impulsionou para cima. Estava voando. Gritou:
- Sou um pássaro. Sou um pássaro.
E sem que ninguém percebesse o que estava acontecendo, ele sumiu no cinza pálida do céu. Atravessou uma grossa nuvem e deparou com um sol radiante. Gritou novamente:
- Sou um pássaro feliz.


Pastorelli

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