domingo, 22 de outubro de 2017

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SEGUNDA CARTA PARA UM AMIGO


Querido amigo,
Passei pela sua casa, lá você não estava, havia o silêncio dos livros fechados, trancados em pilhas, recordei da sua empolgação ao ler um conto do Herberto Helder, ao concluir a leitura, você dizendo: - Não pareceu tão bom, como da primeira vez que li! Nunca tinha visto o rosto do seu pai, se lembra da infância? Para nós, a figura de um pai era aquela que não chorava, não adoecia, estava sempre forte, indo e voltando do trabalho. Meu pai me colocava em seu pescoço e lá do alto, caminhávamos pelo bairro, rumo ao campo de futebol, eu era um gigante de cinco ou seis anos. O breve balançar de cabeça, as mãos no volante, um olhar ilhado entre o vazio e o lacrimejar seguidos de um É..., era seu pai agora, o homem oco que vi em você.
 Seu filho estava calado, ocupando a cabeça com um videogame, talvez pensando numa solução como a renovação automática da vida, ao reiniciar o jogo, a nova chance que vem com o play.
Ando sentindo muita preguiça, minha barba está grande, uma aluna do quinto ano, nesta semana, me disse que havia fios brancos em meu rosto, os quais eu deveria pintar, achei engraçado, a espontaneidade das crianças, onde é que perdemos isso? Por que escrevi sobre este fato? Ah, lembrei, numa conversa, você me disse que a mãe do Leonard Cohen recomendou a ele que fizesse a barba sempre que estivesse triste, eu com o meu irremediável niilismo, te disse, que não me lembrava do trovador canadense com a barba longa, ele deve ter sido triste quase a vida toda.
Ontem, numa breve viagem de trem, um desconhecido sobre o efeito do álcool, tocava seu pandeiro e dizia que só queria alegrar os outros passageiros, ele também disse que tudo é um problema e cabe a cada proprietário resolver o seu, eu quase sempre blasé, senti aquilo com mais intensidade do que as cartas trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, livro que eu lia naquele momento.
Enquanto estivermos distantes, torço para que a vida se aproxime de ti, te invada como o ar soprado pelos salva-vidas após o afogamento.

Cuide-se muito bem! Forte abraço!

2 comentários

Carlos Éldani Davissara

Sempre intenção, hein, Fernandão?! Parabéns pelo texto. Belo.

pianistaboxeador21

Muito obrigado. Adorei o texto!