terça-feira, 26 de dezembro de 2017

0

CARTA PARA NINIL GONÇALVES



Mestre Ninil,
Este ano finalmente, caminhei pelas ruas da sua Cristina, as imagens dos seus livros funcionaram como um mapa, para os olhos que conduziram meus pés.
Não sei porquê, mas algumas das mulheres retratadas em seu último livro me trouxeram algo kafkiano, elas pareciam esperar algo ou alguém, coisa ou gente que não virá.
A fotografia da sua mãe em duas das quatro capas dos seus trabalhos... Sinto a sua mão se erguer e perseguir o corpo físico dela, sem conseguir tocá-la, ou de repente, como se aquela estrada registrada se chamasse silêncio, você na outra mão, de passagem, fitando-a por um daqueles instantes que usurpam a duração do tempo, segue observando-a pelas costas, ela ao contrário da narrativa bíblica e mostrando-se mais forte que Orfeu, mantém o olhar sempre para frente.
Mariza aspira de olhos fechados o cheiro da flor, os cabelos brancos mostram que leva tempo para conseguir bons resultados no árduo exercício da delicadeza, Vicentina não fica para trás, ela demonstra a sutileza necessária para acolher uma flor entre os dedos sem despedaçá-la. Como isso é possível?
São Paulo é terra estranha, arrogante e hostil, imagina encontrar tempo para tocar flauta para um cão, que ouve atento com olhar compenetrado? As águas estão poluídas, cheiram mal, não há maestros que possam reger os rios tristes daqui, neles não há música, só um silêncio sem transcendência.
Dizem que o cinema de Win Wanders e o de Bergman possui forte conexão com a terra natal deles penso que a sua fotografia possui semelhante ligação, o seu fotografar transcende em Cristina.
Alquimia a maneira como numa conversa você consegue sem pedantismo, tornar a sua erudição possível de compreender, algo que não está estático numa bibliografia, mas sim, que cabe na vida cotidiana, elevando o pensar do interlocutor, suscitando dúvidas que logo viram interesse.
Tenho orgulho de fotografar com uma câmera que foi sua, a fotografia tem me possibilitado entrar em contato, sabe? Não sei se um dia serei um fotógrafo, mas saiba que suas pesquisas acadêmicas tem em mim um porto no real, afinal, você reeducou meu olhar com sua obra.
 Um dia desses, estava fotografando na escola, dois alunos daqueles apimentados, pediram para ver a câmera, eu falei um pouco sobre o funcionamento do aparelho, logo, um deles fez um retrato bem bonito do colega, no outro dia conversaram comigo sobre um trabalho de Artes, criando um conceito para um ensaio sobre o futebol na escola, bobagem minha, mais sei que vai gostar de saber disso.
De alguma forma, tudo isso tem raízes em ti.
Meu mais sincero afeto, obrigado por tudo!


Ninil Gonçalves é fotógrafo, poeta, Mestre e Doutorando em Educação, autor dos livros Absorções (poemas), Cristina nos olhos, Cristinidades e Cristinas, Terezas, Marias, Anas.. (fotografia).

Seja o primeiro a comentar: