domingo, 3 de dezembro de 2017

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LITERATURA E SAÚDE

Associar literatura e saúde nos sugere primeiro uma correção, já que a falta do bem estar físico inspira mais os autores, do que a presença deste, como exemplo: temos o poeta Manuel Bandeira. A tuberculose que arruinou os planos do jovem recifense em se tornar engenheiro, impulsionou-o para a criação poética, doença que o fez viver 64 dos seus 82 anos de vida, com a morte fungando em seu cangote.
Da primeira estrofe do poema Epígrafe, o primeiro do livro A cinza das horas, de 1917: Sou bem-nascido. Menino/ Fui, como os demais, feliz./ Depois, veio o mau destino/ E fez de mim o que quis... Até os versos de aceitação do fim, presentes em Consoada: Alô, iniludível!/ O meu dia foi bom, pode a noite descer..., de 1955.
Também podemos lembrar o jovem poeta Mário de Sá-Carneiro, que de tanto sentir-se mal na vida, acabou cometendo suicídio, em muitos dos seus versos, como estes de Dispersão, há indícios do seu sentir o oco do mundo: Perdi a morte e a vida,/ E, louco, não enlouqueço.../ A hora foge vivida, / Eu sigo-a, mas permaneço...
Adentrando o universo das personagens, a cegueira associada ao ciúme, prende Malu, protagonista do romance Mosaico de rancores, de Márcia Barbieri, num mal estar imenso construído pelo imaginar que tanto lhe causa dores: Tudo está enquadrado em uma foto que não posso ver. O mundo perfeito das ideias.
Mas não dá para esquecer o protagonista de Memórias do subsolo, do gênio russo, o primeiro parágrafo vem bem a calhar para este tema: Sou um homem doente... Um homem mau.Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora rerspeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva...
Pisando no solo do real, juntar literatura e saúde de alguma forma me faz percorrer parte do meu percurso como humano, primeiro pensei em falar sobre minha experiência como paciente psiquiátrico, mas como isso é cada vez mais comum, quase banal, pensei melhor e decidi estabelecer uma ponte entre e literatura e a experiência de trabalhar como agente de saúde por sete anos, no jardim Nazaré, zona leste de São Paulo.
Se o Juliano G. Pessanha está certo, toda narrativa antes de ser escrita no papel ou tela do computador, deve ser escrita no corpo do autor, ao longo desse período pude sentir em meu corpo cada história recebida por meio da escuta atenta, ser tatuada em meu ser.
Como bem escreveu Rosa Montero, um dos porquês para se dedicar ao fazer literário, se deve ao fato de não suportarmos a vida sem entretê-la com fantasias, obviamente, que ao longo dos anos como agente, fiz orientações sobre dengue, hipertensão arterial, diabetes, cuidados com recém-nascidos, contudo, havia um grupo de pessoas que ao longo das visitas, queriam apenas falar, narrar suas dores, suas memórias, inconscientemente, há aí a inspiração para boa parte das personagens que construí no meu primeiro livreto, mulheres e homens trabalhadores manipulando seus silêncios, impedidos de agir. Rosa, a escritora espanhola, disse que: A loucura é viver no vazio dos outros, numa ordem que ninguém compartilha. A mãe com o sonho de ter o filho padre, o vê voltando do seminário com o diagnóstico de esquizofrenia, a puérpera que perdeu seu filho depois de um mês de nascimento, o homem com câncer no cérebro que gritava incessantemente o nome da esposa...
Lá nos passos que me levavam para o exercício da função, ouvir as histórias dos sobreviventes, ao longo das visitas domiciliares, o narrador de Walter Benjamin se fez presente na boca de cada um daqueles cidadãos, se esta figura está em extinção no mundo literário, continua viva no pequeno cotidiano dos invisíveis da metrópole, não porque estive na frente de sobreviventes de grandes catástrofes, mas sim porque os dias difíceis daquela multidão de Fabiano e Sinha Vitória, cada um sobrevivia à tragédia da rotina que lhe cabia.


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