quinta-feira, 8 de março de 2018

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MARIA - JANDIRA ZANCHI

     
Ilustração:  Ben Goosens
       

           
            Um pedaço cru da existência, ele dissera. Ainda podia ouvi-lo naquela despedida destituída de sentido. Desertos são percalços e estréias, resmungava. E fora indo e revendo e repassando, quase clara de tantas noites insones e lúcidas. A sua deriva por vilas e solidões... quantos olhos devorara em busca da fuga dos dele, daquela brusca e sentida aparição, apogeu, performance insólita e insolúvel. Já era noite e, agora sim, instalada no mesmo porto, vastidões de areia, o observatório, o céu sem nuvens, delírio de visagens e rompimentos. Como sempre não se interessava, conhecia a nau, a ventania, as agonias, o silêncio.

            E talvez um pedaço de deus. Da odisseia de opressão e liberdade, congestionamento em busca de vida e espaço, para silenciar? Para conhecer, dominar, sobreviver, controlar, evoluir ... para que? A alma de deus era impertinente, volúvel, intrépida, não conhecia o medo. Ela suspirava no caos, amanhecia à superfície, faminta de eros e de lua, serva do dia, namorada da noite, enfim, uma espreita de tempo/espaço em todas direções. Sabia que essas vozes eram um cordão, uma aventura, uma nutrição, disparadas de formas díspares em muitas direções, advindas de rompimentos e sussurros. Consciência. Escutava.

          Mergulhava. No vazio ele voltaria. Sonhava. Os muros, crespos de se vergarem e impedirem a passagem do vento, se diluíam. Delirava. Havia as noites da floresta, sempre a mesma pesagem de
azul e fio de lua, brumas, hálitos gelados, respirações suspensas, penitências, tantos que vagavam. De algum conseguia uma tentativa de posse, um roçar de espíritos, fugidios. Passados, parvas vidas enclausuradas, derramadas em desejo e dor. Ruminavam. Os felizes esqueciam, estúpidos em suas honras, travestidos de suas posses.

           O mar, como o deserto, suspirava a prisão da grade gravitacional. Rede de desejo, quase infantilidade nos apolíneos movimentos de corrigir a vida, de dar base aos destinos, segurança, solidez. Tão profundo que esvaziava, deixava que a unicidade se permitisse grãos de poesia e vida, acasalamentos, filhos, deveres, direitos, demônios, reservava alguma coisa para o anjo, mas, antes, cortava-lhe as asas, direcionando o voo em navegação híbrida, rasteira, rarefeita. Como senhor da vida apontava a morte e, por isso, ela procurava os desertos, as escarpas e os confins. Queria-se embriagada, insultante, vitoriosa de rebeldia opaca.

           No deserto se configuravam os reis, terras de mando e posse. Para uma mulher, dizia-se, era a magnífica aposta de possuir e morrer no outro. O feminino só se deitava em ordens e desenvoltura nos arranjos de muitos enfeites, bibelôs não castos, rosas perfumadas e exultantes. Por isso sempre se perfilava por aquelas ondas de areias virgens, mais antigas que o primeiro sonho. O deserto era o macho, o príncipe, o ateu, o construtor de leis e derivações. E então se podia esquecer, liberta dos mandos da vida por uma lança que, sim, sabia que era coberta de equívocos, tentava vencer os ares, os muros, os mitos, os mares. Tudo tão propício para morrer, um afogamento de vontade e movimento, estado que lhe parecia o natural. Queria vagar, despida de roupas e vaidades, viver para um e nunca se importara com quem esse escolhido se pareceria. Que levantasse as ordens e os comandos dessa construção, rudimentar, das bases e ferros da vida humana.

             Assim fora até ele. Tão desértico quanto ela, apeado em rédeas soltas e dissolvidas, amante do amor, apreciador das longas madrugadas sem eixos, aturdido de uma névoa, escravo de seus instintos, senhor de arbitrariedades, um assumido adepto de rompimentos sociais. Perdido em noites insanas ao ritmo estafante de ancas e ânforas, articulado ator de pequenos papéis. Escravizara-a de maneiras tão brutais e estreitas e vazantes que acabara por se tornar, ela, essa mulher diletante e altiva apátrida, em rezadora de mantras e mandos.

       Não suportava suas muitas chaves. Tinha que abrir porões, viabilizar destinos, ancorar suplicantes e confidenciar suspiros. Agonizava naquele estribilho que a honrava como emérita e valorosa ponte e decisões. A lua e a lástima, agora, eram apenas umas grades dissolvidas em realidades, estratégias de deserto, flexões de meia taça. Tão infeliz, enfim, como qualquer macho. Ela que sobrevoava os jardins, em névoa, a seco (mas enfim eram jardins), do paraíso. Agora se sentava com os donos e danificados e sonhava com ele e esperava que os fluídos do humor dele, que aquecia e requentava ao seu bel prazer, se guardassem para o leite de longas madrugadas. Tão valentes e amorosas que afrontava com vigor os estúpidos do dia a dia, senhora de campos e certezas... que desprezava.

            O sonho (tão belo sono) já se extinguia. A palavra: conquista. Que armadilha... não fossem os olhos dele, aquelas nuances, aqueles requebros de muitos fórceps que o deserto não conhecia. E não lhe oferecia. Por mais que prolongasse as noites, as divas de meio dia, ainda, amarrado nas fronteiras da noite, o belo a esquecia e se perdia no círculo circuito de outras honrarias.

            A morte ali jazia. Com seus credos e rompimentos refez a bagagem, essa estúpida e esclarecida ordem de todos os fatos. Consciente e apolínea miragem de frescos e pagãos odores, levitados e encrespados nas novas criações e desordens, porque sempre, ao longe, se cuspiria. Aos deuses as margens, aos cristãos a honra, ao guerreiro a lança, ao derrotado, suspirou, o amor.


Jandira Zanchi (Egos e Reversos)

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