Ilustração: Ben Goosens |
Um pedaço cru da existência, ele dissera. Ainda podia ouvi-lo naquela
despedida destituída de sentido. Desertos são percalços e estréias, resmungava.
E fora indo e revendo e repassando, quase clara de tantas noites insones e
lúcidas. A sua deriva por vilas e solidões... quantos olhos devorara em busca
da fuga dos dele, daquela brusca e sentida aparição, apogeu, performance
insólita e insolúvel. Já era noite e, agora sim, instalada no mesmo porto,
vastidões de areia, o observatório, o céu sem nuvens, delírio de visagens e
rompimentos. Como sempre não se interessava, conhecia a nau, a ventania, as
agonias, o silêncio.
E talvez um pedaço de deus. Da odisseia
de opressão e liberdade, congestionamento em busca de vida e espaço, para
silenciar? Para conhecer, dominar, sobreviver, controlar, evoluir ... para que?
A alma de deus era impertinente, volúvel, intrépida, não conhecia o medo. Ela
suspirava no caos, amanhecia à superfície, faminta de eros e de lua, serva do
dia, namorada da noite, enfim, uma espreita de tempo/espaço em todas direções.
Sabia que essas vozes eram um cordão, uma aventura, uma nutrição, disparadas de
formas díspares em muitas direções, advindas de rompimentos e sussurros.
Consciência. Escutava.
Mergulhava. No vazio ele voltaria.
Sonhava. Os muros, crespos de se vergarem e impedirem a passagem do vento, se
diluíam. Delirava. Havia as noites da floresta, sempre a mesma pesagem de
azul e fio de lua, brumas, hálitos
gelados, respirações suspensas, penitências, tantos que vagavam. De algum
conseguia uma tentativa de posse, um roçar de espíritos, fugidios. Passados,
parvas vidas enclausuradas, derramadas em desejo e dor. Ruminavam. Os felizes
esqueciam, estúpidos em suas honras, travestidos de suas posses.
O mar, como o deserto, suspirava a prisão da grade gravitacional. Rede de
desejo, quase infantilidade nos apolíneos movimentos de corrigir a vida, de dar
base aos destinos, segurança, solidez. Tão profundo que esvaziava, deixava que
a unicidade se permitisse grãos de poesia e vida, acasalamentos, filhos,
deveres, direitos, demônios, reservava alguma coisa para o anjo, mas, antes,
cortava-lhe as asas, direcionando o voo em navegação híbrida, rasteira,
rarefeita. Como senhor da vida apontava a morte e, por isso, ela procurava os
desertos, as escarpas e os confins. Queria-se embriagada, insultante, vitoriosa
de rebeldia opaca.
No deserto se configuravam os reis, terras de
mando e posse. Para uma mulher, dizia-se, era a magnífica aposta de possuir e
morrer no outro. O feminino só se deitava em ordens e desenvoltura nos arranjos
de muitos enfeites, bibelôs não castos, rosas perfumadas e exultantes. Por isso
sempre se perfilava por aquelas ondas de areias virgens, mais antigas que o
primeiro sonho. O deserto era o macho, o príncipe, o ateu, o construtor de leis
e derivações. E então se podia esquecer, liberta dos mandos da vida por uma
lança que, sim, sabia que era coberta de equívocos, tentava vencer os ares, os
muros, os mitos, os mares. Tudo tão propício para morrer, um afogamento de
vontade e movimento, estado que lhe parecia o natural. Queria vagar, despida de
roupas e vaidades, viver para um e nunca se importara com quem esse escolhido
se pareceria. Que levantasse as ordens e os comandos dessa construção,
rudimentar, das bases e ferros da vida humana.
Assim fora até ele. Tão desértico quanto ela, apeado em rédeas
soltas e dissolvidas, amante do amor, apreciador das longas madrugadas sem
eixos, aturdido de uma névoa, escravo de seus instintos, senhor de
arbitrariedades, um assumido adepto de rompimentos sociais. Perdido em noites
insanas ao ritmo estafante de ancas e ânforas, articulado ator de pequenos
papéis. Escravizara-a de maneiras tão brutais e estreitas e vazantes que
acabara por se tornar, ela, essa mulher diletante e altiva apátrida, em
rezadora de mantras e mandos.
Não suportava
suas muitas chaves. Tinha que abrir porões, viabilizar destinos, ancorar
suplicantes e confidenciar suspiros. Agonizava naquele estribilho que a honrava
como emérita e valorosa ponte e decisões. A lua e a lástima, agora, eram apenas
umas grades dissolvidas em realidades, estratégias de deserto, flexões de meia
taça. Tão infeliz, enfim, como qualquer macho. Ela que sobrevoava os jardins,
em névoa, a seco (mas enfim eram jardins), do paraíso. Agora se sentava com os
donos e danificados e sonhava com ele e esperava que os fluídos do humor dele,
que aquecia e requentava ao seu bel prazer, se guardassem para o leite de
longas madrugadas. Tão valentes e amorosas que afrontava com vigor os estúpidos
do dia a dia, senhora de campos e certezas... que desprezava.
O sonho (tão belo sono) já se extinguia. A palavra: conquista. Que
armadilha... não fossem os olhos dele, aquelas nuances, aqueles requebros de
muitos fórceps que o deserto não conhecia. E não lhe oferecia. Por mais que
prolongasse as noites, as divas de meio dia, ainda, amarrado nas fronteiras da
noite, o belo a esquecia e se perdia no círculo circuito de outras honrarias.
A morte ali jazia. Com seus credos
e rompimentos refez a bagagem, essa estúpida e esclarecida ordem de todos os
fatos. Consciente e apolínea miragem de frescos e pagãos odores, levitados e
encrespados nas novas criações e desordens, porque sempre, ao longe, se
cuspiria. Aos deuses as margens, aos cristãos a honra, ao guerreiro a
lança, ao derrotado, suspirou, o amor.
Jandira Zanchi (Egos e Reversos)
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