sexta-feira, 3 de agosto de 2018

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Pequenas histórias 286

Pirassununga com dois SS



- Pirassununga com dois “SS”, - dizia a enfurecida professora para seus alunos do segundo ano de ginásio - Como podem alterar o nome da nossa cidade! Além do que não há palavra começada com a letra “ç”. Pirassununga é nome Tupi-Guarani e quer dizer: Peixe roncador, isto é: PIRA = peixe, SUNU = barulho (ronco), NGA = lugar - (lugar onde o peixe faz barulho (ou ronca), numa tradução literal).
Baixinha, meio gorda, cabelo primorosamente penteado, percorria em passadas curtas o espaço entre as carteiras despertando os sonolentos. Eduardo com o ombro encostado a parede e o queixo apoiado na palma da mão aberta, tentava, ou melhor, dizendo, se entregava ao sono pouco ouvindo o que a professora dizia.
- Pirassununga, está situada na região leste do Estado de São Paulo, tendo uma posição privilegiada, num eixo de desenvolvimento socioeconômico, cuja distância da Capital é apenas a 207 km, foi desenvolvida pelo braço escravo nas lavouras de café, sendo que, em 1911 foi inaugurada a linha ferroviária que a ligação de Cordeirópolis a Descalvado. Vocês terão que fazer uma redação em que esteja inserido todo o histórico social econômico e cultural da cidade.
- Para quando é esse trabalho, professora? – perguntou uma aluna.
- Vocês devem entreg...
- Edu, pinguço, bêbado, cachaceiro. – o grito vindo do lado de fora interrompeu a fala da professora.
Todos os olhares se voltaram para Eduardo que, sonolento, deu um sorriso amarelo.
- Pinguço? Precisa me contar isso, Edu. O que houve? – perguntou Xavier virando-se para falar com o amigo.
- Silêncio. Eduardo, Xavier fiquem quietos. Não fazem o trabalho e depois ficam chorando por nota.
- Mas, professora o Edu não está passando bem.
- O que ele tem?
- Está bêbado, professora, berrou a menina no fundo da sala.
- Bêbado?
- Não, professora...
- Não quero saber, fiquem quietos...
- Ele precisa...
- Não quero saber já disse.
Nisso soou o sinal anunciando o fim da aula de português. Erguendo o tom da voz a professora tentava fazer-se ouvida.
- Não se esqueçam do trabalho para o mês que vem. Boa noite.
Puxando Eduardo pela manga da camisa, Xavier disse:
- Vamos, agora é a aula chata de francês.
- Não posso, vou estourar em faltas.
Ao mesmo tempo a professora entrou:
- Bon soir, asseyez vous, síl vous plait.
E rapidamente atravessou a sala. Sentou a mesa e abriu a caderneta de chamada.
- Tudo bem, vamos esperar a chamada e caímos fora, tudo bem?
- Certo. É melhor, disse Edu.
Assim que a professora terminou a chamada, Xavier levantou-se:
- Professora?
- Sim! Diga Xavier.
- Podemos ir embora? O Edu não está se sentindo bem.
- O que ele tem?
- Está bêbado, professora, berrou novamente a menina no fundo da sala.
Eduardo raivoso se dirigiu a ela vociferando:
- Escuta aqui sua piranha, se estou bêbado ou não, não é da tua conta. E vê se fecha essa perna que ninguém quer ver sua calcinha suja de merda.
- Ei, que isso? Vão embora, podem sair não se prejudiquem por faltas, hien.
- Pode deixar professora.
- Obrigado, professora.
Saíram os dois. Recebendo o vento noturno, Eduardo se sentiu melhor.
- E aí? O que aconteceu?
- Sei lá.
- Como assim?
- Bebi no serviço.
- No Serviço?
- É.
- Conta então como foi.
- Bom aquele merda do Assef Jorge Alefe e o Juvenal saíram depois do almoço. Deixaram a gente ao deus dará. E tinham deixado também dois garrafões de pinga. Cara! Precisa ver que pinga gostosa. Parecia mais vinho do que pinga. Bom o fresco do Josué foi lá e tomou uma dose, e instigou o pessoal a tomar. Claro, ninguém queria, mas no fim, depois dele tanto instigar, chamar a gente de covarde, você sabe que ele sempre quis ver o circo pegar fogo, não é? E como ninguém queria ser chamado de covarde, foi um, foi outro, foi eu, e quando me dei conta estava bêbado. Não me lembro de nada. Nem sei como começou. Disseram que fiz estrago, chutava pacotes de café, berrava, ria não me deixaram fazer mais nada. Só me lembro do Samuel falando: - Pegue a bicicleta dele e leve ele para casa. Aí, eu disse: - Não estou com a bicicleta. Ela está no conserto. Mais nada lembro. Isto é, lembro que desci a rua colado ao muro do quartel para me orientar. A rua dançava, ela vinha na minha frente e voltava. Pensei vou colado ao muro assim não corro perigo de ir para o meio da rua. Olha como ficou minha mão raspando no muro do quartel. Não sei como cheguei em casa, nem como tomei banho e nem como jantei. Sei que me preocupava para que os meus pais não percebessem, e nem sei como cheguei à escola, quando me vi estava encostado à parede e dormindo.
- Caramba! E agora?
- Agora o que?
- Vão te mandar embora.
- Que nada. Eles precisam da gente. Somos menores e não somos registrados. A única coisa que podem fazer é deixar a gente trabalhando além da conta.
- Como assim?
- Amanhã é sábado não é?
- É.
- E amanhã, como todos os sábados é dia de lavar os carros do miserável Assef, e aí obrigam a gente lavar de cima em baixo o carro, pouco se importando com a hora.
- Entendo.
- Aonde vamos amanhã?
- Talvez na chácara do tio do Japonês.
- E a noite?
- Eu não vou ao cinema.
- Por quê?
- Quero assistir o futebol de salão no Colégio Normal.
- O pessoal vai?
- Não sei.
- Bom, vamos ver.
- Olhe, sei que vai estar lá àquela menina que você vem paquerando.
- Ela vai?
- Ouvi dizer que sim.
- De qualquer maneira vamos ver então. Deixe entrar. Vou direto para a cama. Boa noite.
- Boa noite. 

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