domingo, 9 de setembro de 2018

0

SER




De repente, o preto e branco desta fotografia surge para me assombrar. Invade a retina e, depois de me transportar para um palco fictício, me faze criar as cenas do primeiro ato, a organizar os figurinos e a estimar o tempo de duração de gargalhadas e de improváveis lágrimas contidas para disfarçar a emoção. Enfim, as cortinas se abrem para mim, um ator imaginário que se atreve à primeira encenação.

Penso que sou um mendigo. Um mendigo de cabelo ensebado e uma cicatriz a desfigurar a sobrancelha esquerda, com andrajos semelhantes aos daqueles que transitam nas ruas das grandes cidades. Só os andrajos. Não a falta de emprego, de abrigo, de asseio e dignidade. Não a falta de uma fábula capaz de embalar um futuro sem horizontes. Não a presença de um olhar perdido diante da mesmice sombria que amontoa desconsolos dentro do peito. Sinto fome. Não a mesma fome.
Sou um milionário. Sim, um milionário, que usa roupas de grife, com maquiagem retocada a todo o instante, de conversa pausada e refinado gestual. Só os simulacros. Não a propriedade dos bancos, dos rebanhos, das cervejarias e dos fast foods de lanche saboroso e recheado de gordura.  Não a condução feita por chauffeur particular até o píer para o embarque em lancha de 80 pés. Não a preocupação com a perda de dinheiro com as oscilações da bolsa de valores. Tenho níqueis. Não o mesmo saldo bancário.
Também sou um velho de pouco riso, sem arrependimentos. Abandonada pelo marido, sou uma mulher que conta inúmeras vantagens. Sou um menino querendo ser jogador de futebol, canelas finas e sorriso enferrujado é o meu cartão de visita. Sou rato, sapo, príncipe, forasteiro. Sou um condenado. Tenho medo. Não o mesmo medo de não poder se desviar do cadafalso.
Agora, despido de andrajos e simulacros, olho o preto e branco desta fotografia com a mesma angústia subentendida no clamor solitário da postura misteriosa de seu personagem único. Sinto o fogo das vontades. Percebo minha inquietação, retraída, assanhar-se. Quero enfrentar a mim mesmo, representar-me, gesticular, soltar a voz. Juntar o que não tenho, elaborar um plano, executar uma fase de cada vez, somar e dividir os riscos e que venha qualquer resultado.
A penumbra desta fotografia é suficiente para mostrar que falta algo no espaço ao redor, talvez uma mobília, talvez uma gaveta que revele a antiguidade de um sonho manuscrito num papel roído por traças. A pouca luz me impulsiona a encarar a quem quer que seja para expandir o meu cenário. Porque suspeito que – lá fora – a vida também é “cor e sorte”.



Este é o sexto texto do projeto, onde um autor cria uma narrativa dialogando com uma imagem inédita. O texto acima foi escrito pelo poeta Sérgio Aral. 




Seja o primeiro a comentar: