De repente, o preto e branco desta
fotografia surge para me assombrar. Invade a retina e, depois de me transportar
para um palco fictício, me faze criar as cenas do primeiro ato, a organizar os
figurinos e a estimar o tempo de duração de gargalhadas e de improváveis
lágrimas contidas para disfarçar a emoção. Enfim, as cortinas se abrem para
mim, um ator imaginário que se atreve à primeira encenação.
Penso que sou um mendigo. Um mendigo
de cabelo ensebado e uma cicatriz a desfigurar a sobrancelha esquerda, com
andrajos semelhantes aos daqueles que transitam nas ruas das grandes cidades.
Só os andrajos. Não a falta de emprego, de abrigo, de asseio e dignidade. Não a
falta de uma fábula capaz de embalar um futuro sem horizontes. Não a presença de
um olhar perdido diante da mesmice sombria que amontoa desconsolos dentro do
peito. Sinto fome. Não a mesma fome.
Sou um milionário. Sim, um milionário,
que usa roupas de grife, com maquiagem retocada a todo o instante, de conversa
pausada e refinado gestual. Só os simulacros. Não a propriedade dos bancos, dos
rebanhos, das cervejarias e dos fast
foods de lanche saboroso e recheado de gordura. Não a condução feita por chauffeur particular até o píer para o embarque em lancha de 80
pés. Não a preocupação com a perda de dinheiro com as oscilações da bolsa de
valores. Tenho níqueis. Não o mesmo saldo bancário.
Também sou um velho de pouco riso, sem
arrependimentos. Abandonada pelo marido, sou uma mulher que conta inúmeras
vantagens. Sou um menino querendo ser jogador de futebol, canelas finas e
sorriso enferrujado é o meu cartão de visita. Sou rato, sapo, príncipe,
forasteiro. Sou um condenado. Tenho medo. Não o mesmo medo de não poder se
desviar do cadafalso.
Agora, despido de andrajos e simulacros,
olho o preto e branco desta fotografia com a mesma angústia subentendida no
clamor solitário da postura misteriosa de seu personagem único. Sinto o fogo das
vontades. Percebo minha inquietação, retraída, assanhar-se. Quero enfrentar a
mim mesmo, representar-me, gesticular, soltar a voz. Juntar o que não tenho,
elaborar um plano, executar uma fase de cada vez, somar e dividir os riscos e que
venha qualquer resultado.
A penumbra desta
fotografia é suficiente para mostrar que falta algo no espaço ao redor, talvez uma
mobília, talvez uma gaveta que revele a antiguidade de um sonho manuscrito num
papel roído por traças. A pouca luz me impulsiona a encarar a quem quer que
seja para expandir o meu cenário. Porque suspeito que – lá fora – a vida também
é “cor e sorte”.
Este é o sexto
texto do projeto, onde um autor cria uma narrativa dialogando com uma imagem
inédita. O texto acima foi escrito pelo poeta Sérgio Aral.
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