quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

0

Pequenas histórias 312


Movimentou as mãos


Movimentou as mãos em sentido contrário uma da outra, rasgou o papel de anotações num vagar instigante, como se ouvisse o estilhaçar de vidros caindo aos seus pés. Percebeu a Epifania do momento, percebeu e guardou no gesto ao jogar o papel rasgado no lixo perto da escrivaninha, aonde todos os dias vinha escrevendo compulsivamente. Desprezou a religiosidade que não tinha cabimento, mas tomou conhecimento dos gestos compulsivos que o fazia escrever religiosamente.
Tomou um bom gole de café com conhaque. O líquido quente desceu queimando a parede da garganta num dilacerar de tecidos. Recostou os largos ombros no espaldar da cadeira. Pensativo, com as mãos unidas como se rezasse, lentamente dirigiu a mente em busca de algo que não sabia o que era.
Dirigiu o olhar para fora, além da janela aberta, onde descortinava um gramado verde recém-aparado e, mais ao longe um pequeno declive em direção ao jardim. Estava quase três horas sentado em frente ao micro e poucas palavras tinham sido digitadas. Deu um giro de cento e oitenta graus na cadeira. Levantou-se. Saiu da sala.
Na cozinha preparou um suculento lanche de mostarda, pipoca, e pimenta. Com uma cerveja gelada, saboreou o lanche degustando cada porção de ingrediente. Depois de terminado a refeição bizarra, limpou os lábios com o guardanapo de papel. Soltou um arroto. Limpou os dentes com o palito. Voltou à sala.
Olhou o micro com sua proteção de tela com figuras das mais estranhas possíveis. Sentou na cadeira giratória. Tomou conta dele uma excitação impossível de controlar. Sempre que comia um lanche bizarro, como diziam, com cerveja gelada, podia contar, uma excitação o dominava. Às vezes era incontrolável. Ficava com vergonha, pois sempre estava acompanhado. Não tinha como esconder. Outras vezes corria ao banheiro para se aliviar. Era fatal, sabia disso, mas teimava sempre em comer seus lanches bizarros. Quando não era pipoca com mostarda, era pipoca com linguiça crua. E não podia faltar a cerveja gelada.
Como estava sozinho não deu importância ao fato. Isto é, procurou se aliviar da maneira corriqueira de sempre. Trancou-se no banheiro por vinte minutos. Extasiado e satisfeito voltou para a sala. No monitor as figuras das mais estranhas as mais comuns, passavam sucessivamente. Reviu o que escrevera. Que coisa sem sentido! Pensou ao final da leitura. Quem se interessará por isso, pensou. Bom, como não posso rasgar o monitor em dois, como fiz com o papel que agora está no fundo do lixo, só posso desligar essa porcaria. E foi o que fez. No entanto, sem atinar como foi, esbarrou no monitor que tombou no tampo da mesa e, por uma infelicidade, talvez o cabo estivesse curto, o monitor escorregou para a beira da mesa e caiu no chão se espatifando em dois.
Foi nesse momento que tomou conhecimento de um fato estarrecedor. Junto com o monitor, ele, a sala e tudo o mais, também se espatifaram em dois.
Reconheceu, era um personagem a mercê do seu autor.

pastorelli

Seja o primeiro a comentar: