domingo, 17 de fevereiro de 2019

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Pequenas histórias 323


 O rolo compressor


O rolo compressor da inspiração amassava seus dedos enquanto o cursor luminoso percorria a tela toda a procura do ícone que precisava. E, quando imaginou ser aquele instante o momento certo, com o dedo indicador da mão direita, pressionou o lado esquerdo do mouse abrindo assim o intrigante e inusitado Word. A tela antes azul com fundo vermelho e branco, com os ícones das empresas, foi substituída pelo branco total, tendo acima, as barras de ferramentas. Levando o cursor ao item justificado, configurou o papel eletrônico com a fonte e tamanho desejado. Depois ficou em silêncio ouvindo o palrar do ambiente de vozes estridentes machucando o ar opressivo e abafado do escritório. Então, inquietos os dedos passearam sobre as teclas pretas onde sobressaiam as letras brancas e, num descompromisso com o que pudesse vir a ser, as letras uma a uma foram manchando a tela branca. Intrigado, sem controle algum, viu que as letras formavam palavras desconexas e estranhas.
Sorriu. Quando não sabia o que escrever, sorria. Portanto, sorriu mais uma vez pela bobeira que estava escrevendo. Mas não apagou, deixou a frase.
Abismado, não sabia o que lhe acontecia, viu no espelho ao seu lado, a figura de si mesmo, mas ao contrário do que ele queria ser. Descontrolado teve vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Contorceu a melancolia que o invadia, alma conduzida pela música românica brega que saia do alto falante numa voz forte, masculina falando a música ao invés de cantar. Podia ver as ondas de frequência modulada, realçada no mostrador, 101, 7 mega hertz. Seu rosto de traços finos, bonitos olhos, linhas anatômicas escorriam para o chão desfigurando-o quase totalmente. Assim, uma atrás da outra, as expressões diferentes de raiva, ódio, culpa, magoa tomavam formas extravagantes. Consciente, perguntou: o que é estar em plena e sã consciência afinal? É sentir ao mesmo tempo o que lhe ocorria e ter os sentimentos sendo alterado sem prévio acontecimento? Por isso é que chorava e ria ao mesmo tempo quase que descontroladamente.
Então, sem ao mesmo atinar com os movimentos, e muito menos sem dar pelota aos amigos, mergulhou no ralo como se fosse ele um escarro que estivesse estagnado há muito tempo nos pulmões nicotinados.
Não houve tempo dos amigos se desviarem do líquido asqueroso manchando de verde gosmento a camisa branca engravatada.

Pastorelli / Jean Alzair

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