quarta-feira, 8 de setembro de 2010

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ESPREITA - Ronie Von Martins



O cigarro já começava a esquentar seus dedos. Gostaria de se incendiar literalmente e acabar com aquilo de uma vez por todas. Esperar. Observar. Conhecer. Já estava cansado. Sua vida nada mais era que pedaços de tantas vidas que observara. Sempre à espreita. Sugando a vida alheia. Os detalhes, a sordidez, as pequenas alegrias, as dores. A traição. Todos traíam. De uma forma ou de outra a raça humana era traidora. E pagavam para ele observar e contar. Relatar os fatos.
Noite. Sentado ao volante do carro lançou a bagana do cigarro pela janela. O pequeno bólido incandescente traçou uma curva no ar e morreu no chão cuspindo algumas fagulhas do antigo brilho. Morte.
Todos queriam ter certeza. Interiormente já a tinham. Todos que o contratavam sabiam. Mas precisavam de provas. “Traga-me a certeza!” então ele saia para as noites. Farejando as humanas falhas, os deslizes, as fraquezas.
Encheu o copo da térmica de café. Bebeu um grande gole. Muito doce. Mas gostava. Gostava das coisas doces...
De dentro da escuridão e do silêncio da rua, o cachorro aproximou-se e urinou na roda do carro. Ele sorriu. Gostaria de ser um cachorro e urinar em alguém. Mostrar que não estava nem aí para nada, recusar um trabalho... mijar no pé de um idiota qualquer.
De súbito voltou suas atenções para a casa. Movimento. Levemente a porta abriu-se, uma sombra masculina parecia beijar um vulto que não saia à porta. Sem o acender das luzes ganhou a rua. Mãos no bolso, cabeça baixa.
Era ele sim. Já tinha fotos e gravações suficientes para comprovar. A mulher estava “frita”.
O marido viajando à negócios e ela ali, aproveitando a vida com o advogado da família.
Tentou sentir alguma coisa em relação ao fato. Nada. Raiva: o homem trabalhando e a vagabunda fazendo aquilo... Nada. Não conseguia sentir nada. O marido podia ser um crápula, podia bater na mulher, e esses escapes era a única forma dela “viver”... Nada. Não conseguia se envolver mais. A vida dos outros começava a acabar para ele. Já não havia nenhum prazer.
Estava morrendo. Se vivia através dos pequenos estratos de vida dos outros, então agora estava morto.
Apanhou a foto da mulher de dentro de um envelope. Mulher bonita, uns trinta e sete anos, olhos tristes e boca sensual. Lembrou do rosto do marido. Homem sisudo e arrogante. Acostumado a mandar. Sobrancelhas espessas e sorriso debochado. Apanhou a foto do advogado. Rapaz jovem e alegre, um olhar que denotava algo de presunçoso... Levantou o rosto para o espelho do carro. Olhou-se. Nada.

No outro dia o marido recebeu um envelope estranho. Um cheiro estranho exalava de dentro. Abriu o envelope enojado e sufocado pelo cheiro. Puxou de dentro algumas fotos e documentos avariados, todos manchados e molhados. Nada podia ser lido ou visto. “Mas o que é isto?” Pensou. Apanhou o telefone. Discou o número que sabia de cor. “O que é isso?” “Nada.” Foi a resposta do outro lado da linha. “Estou saindo.”
“Seu filho da P...” O cheiro começava a empestear a sala. “Que cheiro horrível é esse?”
“Mijo.”




Imagem: Peter Cakovsky




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