terça-feira, 12 de janeiro de 2010

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Nas passagens livres, o sorriso [prosa ] - Sonia Regina




"Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência 
da figura - o objeto - que, como a música, não ilustra coisa alguma,
não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se 
em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho 
se torna pensamento, onde o traço se torna existência." Michel Seuphor



Nos vidros da janela havia sido aplicado um filme prateado de controle solar. Produzia um efeito espelhado onde houvesse mais luz. Estando em casa e olhando através deles Ivana via a roseira, durante o dia. À noite via a si mesma. E vice-versa. Lá de fora, à noite, era possível vê-la perambulando pela casa, lendo ou pintando. Durante o dia nada se via além dos espelhos em que se transformavam as vidraças.
Alguns poderiam se inquietar com imagens que nem sempre se davam a conhecer inteiramente. Ivana, ao contrário, ficava intrigada com aquele não apropriar-se de si. As imagens nunca tinham uma existência absoluta.
Gostava de pintar à noite. Como se as janelas fossem a fronteira de mundos paralelos, Ivana as abria e fechava rapidamente, deixando que a memória e a observação a guiassem. A tela perdia a brancura à medida em que surgia a mulher e o arvoredo. As rosas, em primeiro plano, tinham cor tão intensa que antecipavam o aroma. Ivana as trabalhava durante o dia, a partir da claridade.

* * *
- Nada impede que essas experiências estéticas sejam manifestações sensíveis de suas idéias. E isso é arte, minha cara. – Falou-lhe Ian, um amigo poeta.
- "Estarei escrevendo com meus olhos?", disse Ivana, parafraseando Frida Kahlo.
- Por que não? A escrita está encarnada nessa roseira testamentária que você inscreveu no tempo.
- Metáforas, meu poeta. Arte?
- A poesia é uma manifestação literária e nem sempre é arte. Há poetas que são mais versificadores do que criadores de imagens e isso os afasta do compromisso ético alcançado pela arte. Mas você cria imagens, Ivana, com seu corpo.
Sim, criava. Munia o reflexo de calor. De um calor quase humano. Havia harmonia em suas habilidades, nenhum ardil ou astúcia: comprometia-se. E o resultado, belo, convocava a um mergulho profundo na luz que resgatava das sombras e ofertava, tão simplesmente.

* * *
- Lembra do que disse Clarice Lispector? – acrescentou Ian - "É com o corpo inteiro que pinto meus quadros."
Ivana serenou. E disse: - Sim, lembro. E concordo com ela, só assim se faz arte: estando inteiramente entregue.
- É, você é mesmo avessa ao intelectualismo estético.
- Pois não é esse um caminho que se distancia da arte, Ian, ao ter como marca uma hipertrofia do entendimento? – Suspirou - Causa a repressão da sensibilidade...
Riram. Depois de longos anos Ivana se perturbava – ainda que por instantes - com uma conversa. Os desassossegos há muito não contavam e recontavam o número de pulsações do seu coração. Tendo por rumo o tempo presente, nos pincéis fervilhava um princípio espiritual. Era neles que a essência de Ivana se avivava, quase esteio a reafirmar o corpo. Suas mãos ditavam os passos, determinavam o compasso. As alterações consistiam. Renovação.

* * *
Contudo, alguns medos ainda a rondavam e isso a perturbava. Ivana relia o bruxo do Cosme Velho (como Carlos Drummond de Andrade chamava Machado de Assis), o cínico, o cético.
Sempre aprendia com sua ironia fina, tão fina que feria. O inesperado surgia numa esquina qualquer de um de seus livros, num virar de página, na finura da folha. Não como um animal se anunciava, primeiramente a sibilar, ladrar, expor o ferrão. Não era tampouco com a palavra, antiga e tão atualizada – universal.
Na verdade, Machado nada avisava. Lançava, como num jogo de dardos, seu testemunho sobre as relações dos seres humanos, a partir de um olhar arguto. Inventava tipos que viviam amores, mortes, vaidades, cobiças, loucuras. Vida, simplesmente.

* * *
As vísceras de uma tela são uma fonte subterrânea, mas o âmago da pintura tem acesso vedado ao pensamento, inclusive do pintor. Lá não existem chaves-mestras detentoras de segredos, as portas não têm cães de guarda.
Como as rochas, que não se obscurecem por enigmas nelas gravados à espera de decifração, as fronteiras entre o pintor e a pintura têm limites dinâmicos e a imagem relampeja, nas passagens livres. Como um sorriso.

* * *
Machado de Assis e Ivana afirmavam, através de seus personagens e imagens, o absoluto e o relativo, expunham o conflito da relação entre o que é e o que parece ser. E a meta dos céticos é exatamente a ataraxia - a tranqüilidade grega que nos faz sorrir, impassíveis. E rir. Rir até do medo.

*
[6.1.10]


1 Comentário

Jorge Xerxes

Adorei: Especialmente o primeiro trecho -
dentro e fora; Ivana e a roseira; fronteira;
dia e noite; passagem. E também o quarto -
aquele sobre o bruxo do Cosme Velho; a
ironia fina que fere.