segunda-feira, 12 de abril de 2010

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A PRIMEIRA RUA DE UM SONHO

A noite dos anos nos obriga muitas vezes a não pensar em certos detalhes da vida que algumas almas atentas, felizmente, não deixam que nossos corações insensatos, distraídos, façam cair no esquecimento humano. Ganhei esta semana de uma amiga, de olhos sensíveis, delicados e acesos como faróis, uma fotografia da primeira Rua de Belém.

A Rua da Ladeira foi a artéria inicial por onde começou a pulsar e correr o sangue quente e apaixonante da nossa cidade. Como se fosse uma criança perdida na selva da vida começava, assim, a dar seus primeiros passos em busca do desconhecido, do que ainda era fantástico, invisível.

Rasgada na floresta pelas mãos dos colonizadores portugueses que aportaram por aqui, talvez por um acaso do destino, no século XVI e que abriram no meio do verde o primeiro olhar para plantar no solo fértil e úmido de uma nova terra o coração de uma cidade que, hoje, passados mais de quatrocentos anos, continua batendo cada vez mais forte contando histórias que nunca se perderam no tempo sobre a mais européia das capitais do nosso país.

Fico pensando no passado e imagino os primeiros amores maculando no meio das noites quentes a pureza das alcovas dos seus casarios construídos de pedra e cal e com fachadas bordadas com os mais belos azulejos de todas as cores e desenhos trazidos de Lisboa. Era uma nova paisagem que devia ficar a confundir os pássaros em suas revoadas vespertinas, belos como os arco-íris, e os olhos quase aflitos dos índios Tupinambás, assustados anfitriões, de almas puras de civilização, sentindo que do meio da floresta encantada já se misturava aos ventos o aroma do inicio de uma nova, poética e extensa vida.


Os primeiros amantes de Belém, brancos como o leite, vindos nas caravelas coloridas saídas de Portugal, enquanto faziam caricias nas suas carnes delirantes, recebiam as primeiras brisas mágicas da Baia do Guajará, quase um mar intenso e extenso de águas doces, amarelas e encrespadas, puras de civilização, que vinham lamber as pedras da nova rua, como se estivessem a ofertar um banho de boas vindas perfumado de ervas, cheias de segredos, de mistérios, para um lugar que muito tempo depois se tornaria a grande e bela porta de entrada da Amazônia.


Cidades e pessoas têm inicio de vidas semelhantes, ambas alimentadas por cordões umbilicais, um feito de barro e pedra nascidos do ventre da terra e o outro recheado da seiva da vida que nasce das divinas e abençoadas entranhas femininas. Isso é tão real, que por esse motivo homens e cidades nascem, vivem, se confundem e um dia se separam apenas no tempo e no espaço, incapazes, todavia, de contrariar a lei inexorável do andar da vida. Como são a terra e os céus.


A primeira Rua de uma cidade é como o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira relação dos amantes, jamais será esquecida porque é o inicio de uma existência, e existências e paixões jamais são esquecidas pelos corações sensíveis e pelo silencioso caminhar de suas almas. Eternas, encantadas, intimas, felizes, cúmplices.


A primeira Rua de Belém, cujas janelas se abriram para ouvir as primeiras serenatas, fez, durante um bom tempo, do andar térreo dos seus casarios uma selecionada quantidade de bares onde se reuniam artistas, poetas, músicos e onde as mesas colocadas nas suas calçadas iluminadas por pétalas de luar, eram recolhidas somente depois do primeiro traço de sol surgir atrás das árvores gigantes das ilhas que ficam de frente para a cidade, separadas das nossas almas, dos nossos olhos, pelas águas doces da Baia que cerca nossa cidade.


Antigamente passar uma noite na Rua da Ladeira era obrigatório que o prato principal das línguas que falavam e cantavam, contassem somente histórias de sedução, de paixões avassaladoras, de vidas felizes. Depois de ver o sol nascer, ainda dava tempo de alguém fazer uma jura, uma promessa, desde que fossem de amores delirantes, eternos, impetuosos, feiticeiros.


A modernidade, no entanto, fez a primeira rua ficar esquecida pelos homens noturnos e obrigou muitos corações apaixonados a falarem de amor em outros bares sob o teto estrelado de muitas noites imensas de saudades. Permanecem lá, todavia, os sonhos de um passado distante que contam sempre uma história velha, sempre nova, do começo da vida de uma cidade chamada abençoadamente de Belém do Pará.


2 comentários

Betusko

Bela crônica, Noélio. Evoca uma saudade de uma Belém que há muito se perdeu, contida na imensidão das metrópoles.
Abraços

Pedro Du Bois

Caro Noélio, gosto de Belém, pela exuberância amazônica. Pela cordialidade dos seus habitantes. Gosto, agora, mais ainda, pelo relato que você fez. Belo. Abraços, Pedro.