domingo, 25 de abril de 2010

4

Quem jamais te esqueceria? - Sonia Regina


“A vida democrática em Portugal está agora a cinco anos de igualar os 41 anos de ditadura a que uma revolução militar pacífica veio pôr fim.” diz o Portugal Digital.

“A vida democrática no Brasil está a 3 dias de pôr na memória os fatos que não se fecharam porque foram erradamente interpretados pela lei de Anistia”, digo eu. E mais milhões de pessoas.

Volto a falar de memória. Dos fatos que nunca serão esquecidos, dos que nunca serão esquecidos e precisam ser realizados, para fazerem parte da memória.
No dia 25 de Abril de 1974 uma revolução pôs fim à ditadura de Salazar, que vigorava desde 1926. Um soldado – conta-se – recebeu um cravo de uma florista que faria uma cerimônia em hotel próximo e o colocou em sua espingarda, sendo imitado por todo o pelotão.
No Brasil, de 1969 a 1973, vivíamos o Milagre Econômico (com o Brasil tri-campeão mundial, em 70) O país crescia rapidamente, a inflação era por volta de 18%. Investimentos e empréstimos geravam milhões de empregos, obras faraônicas foram executadas (Transamazônica, Ponte Rio-Niterói). Tudo com custo também faraônico: uma dívida externa altíssima. E com uma dívida interna também altíssima, essa nunca paga: as vidas dos que realizavam uma oposição à ditadura enquanto vivíamos o Milagre e saudávamos a seleção canarinho.
Pois se em 1974 saiu o presidente Emílio Garrastazu Médici, não ficaram para trás esses anos do seu governo (de 69 a 74): - os anos de chumbo. O período de maior repressão do governo militar não só investiu contra a luta armada (ganhava força, no campo, a guerrilha rural - principalmente no Araguaia): professores e políticos foram investigados, presos, torturados ou exilados do país. E também a classe artística. A censura não distinguiu nenhuma expressão da arte: foi colocada em execução contra jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes... Músicas.
Chico Buarque compôs Tanto Mar em 1975. A letra original (transcrita abaixo), vetada pela censura, teve uma gravação editada apenas em Portugal.

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim


Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim


Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar


Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Sérgio Godinho, músico português residente na França, embora só tenha voltado para Portugal depois do 25 de abril, compôs Que força é essa, música lançada no seu primeiro LP - Sobreviventes -, em 1971. Transcrevo a letra:

Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades pr'ós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro


Que força é essa [bis]
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo [bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo [bis 3]


Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes


(Que força...)


(Vi-te a trabalhar...)


Que força é essa [bis]
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo [bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo

Que força é essa, amigo [bis 10]


Uma revolução realizada por militares, em Portugal; uma revolução reprimida por militares, no Brasil. Aquela, livrou o país da ditadura. Esta, trouxe ao país a ditadura. Longas, ambas. Mas nossos povos têm memória e esta vive.
Quem jamais te esqueceria? poderia ser o título de uma canção. Mas não o é, nem o é do poema que não escrevi. Esta minha escrita é uma
voz – a minha. Ela diz: “não nos esqueçamos”. Não nos esqueçamos dos revolucionários portugueses, não nos esqueçamos dos revolucionários brasileiros (erradamente o golpe militar de 64 é chamado de revolução – penso estar claro a quem me refiro), não nos esqueçamos dos seus torturadores.
Na próxima 4ª feira, 28 de abril, será julgada pelo STF (Supremo tribunal Federal) a ação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que contesta o artigo 1º da Lei da Anistia. O Supremo adiou o julgamento marcado para dia 14 do corrente por entender que a ação devia ser julgada com quórum completo – havia quórum mínimo. Para a OAB, a lei "estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crime".
Eu escrevo no meu artigo Jamais esquecidos, mas memória, publicado originalmente na revista digital Letras et Cetera com o título O julgamento da ação da OAB que contesta lei de anistia foi adiado sine die:

“Crimes políticos foram perdoados por essa lei. E também foi estendido o perdão aos agentes públicos que, na época da ditadura, abusaram da sua autoridade e poder contra os que se opunham ao regime. É o que está sendo contestado pela OAB, em suma: a anistia estendida aos que torturaram, estupraram e mataram - durante a ditadura -, considerando-os criminosos políticos. O que não são: esses são crimes comuns que, portanto, não têm esse amparo legal.”

Os que morreram pela liberdade não devem ser esquecidos – nem os que os mataram e torturaram. Ainda que, para haver um desfecho nessa parte da nossa história, precisemos soltar nossas vozes para serem ouvidas no STF. Mesmo sem música.
Deixo a letra da canção Grândola, vila morena, composta por Zeca Afonso (músico português) em 1964. É famosa por ter sido escolhida como uma das senhas para revolução do 25 de abril: o que não me admira a escolha, num país de corajosos navegadores e poetas. A outra senha foi a música "E depois do adeus", de Paulo de Carvalho. Grândola foi o sinal de que a revolução ganhava terreno, para as tropas mais afastadas de Lisboa.
A Fraternidade, a igualdade, a vontade - que Zeca Afonso escreveu e cantou (assim como o povo português, naquele 25 de abril) – e as atrocidades (e seus agentes) vividas pelos brasileiros para que fosse reconquistada a liberdade: quem jamais esqueceria?


GRÂNDOLA VILA MORENA


ZECA AFONSO

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade


Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena


Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade


Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena


À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade


Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade.



Sonia Regina
25 de abril de 2010


Imagem: da.online.pt

____________________________________________
A poeta e escritora Sonia Regina é psicóloga e professora

4 comentários

Jorge Xerxes

Sonia, Um Artigo Importante. Espero que na Próxima Quarta - 28 de Abril de 2010 - o STF Repare Essa Mácula Histórica. Precisamos de Atitudes Corajosas e Ânimo Renovado. Um Beijo, Jorge X

Editorial

Obrigada, meu amigo, pelo retorno.
Sim, uma mácula histórica.
Tomara seja reparada, mas..não sei.
Penso que a coragem é menor que o ânimo.

Beijos
da Sonia

Noélio A. de Mello

Sonia, amiga

Um artigo soberbo. Que o sol da liberdade não deixa continuar viva essa mancha da vida. que seja hoje o dia da verdade.
Teu texto é um risco de luz num triste pedaço da nossa história.
Noélio A. de Mello

Editorial

Obrigada, Noélio, embora...não sei não.
Mas...soltei o verbo, como se diz - literalmente.
bjs mis