domingo, 23 de maio de 2010

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A despedida de Mário - Bruna Maria

por Bruna Maria.

Sua carta era direta, dizia objetivamente o que se sucederia alguns dias depois de ser enviada.

O sistema dos Correios, então, não podia falhar. A notícia necessitava chegar antes de o acontecimento efetivamente se dar – uma inversão jornalística clássica. Talvez, a necessidade de noticiar antes do acontecer de fato fosse, na verdade, um pedido silencioso por ajuda. À frente do agir, avisava sobre a terrível (futura) ação. Então alguém que pudesse impedir, que de alguma forma pudesse ir até lá segurar suas mãos tapar-lhe a boca e impedir, esse alguém faria isto, afinal, faria isto e a notícia adiantada, quando chegasse a seu destino, nada mais teria sido que afoitamento vão diante de circunstâncias desastradas de uma vida solitária e angustiada. Nada, absolutamente nada de cruel e triste, assim, aconteceria.

(Mas a verdade é que aconteceu.)

E em algum momento – quem sabe quando a carta ainda cruzava a fronteira de algum país ibérico –, algo se derramou. Misturada a uma dose derradeira de água, uma substância desconhecida e fatal serviu de última refeição a uma boca seca, a um corpo exausto, a uma vida contemplada como abatida, morta em sendo vida, totalmente lamentável.

Sabe-se que, alguns dias depois do fatal acontecido, a correspondência noticiando o gesto derradeiro de um homem finalmente chegou, sob o céu transtornado de uma tarde chuvosa e triste de Lisboa – gosto de me pôr a imaginar os detalhes – e, então, duas entidades tiveram seu fim: o confuso sujeito visto de longe, apreciado em sua excentricidade; e o sujeito ele mesmo, por anos vivente solitário de ruas distante, de ruas parisienses, que sabia que, no mais, suas motivações particulares para a encenação final e precoce tinha fundamentos que a ninguém mais além dele cabia conhecer.

E, assim, hoje se faz um devaneio posterior e muito imaginado sobre tão sombrio acontecimento humano. De modo que a tarde chuvosa e triste de Lisboa se construiu em mim, talvez porque eu tenha lamentado com assombro a frieza das palavras lidas em uma despedida objetiva da alma que se quer partir; ou, ainda, talvez porque tudo que nos chega seja fruto, em alguma instância, de uma parcela de imaginação própria, peculiar – nossa mesmo.

Concebendo dessa forma, então, abandonei a carta sobre o móvel brilhoso de antiga madeira, e intentei partir. Mas não sem antes trazer a carta comigo, velada como um nódulo ainda não descoberto, com grande ânsia de esquecê-la, porém recordando-a, de alguma forma, recordando-a incansavelmente, como agora.



Imagem: Bruno Girin
Light: reflection of sun and lamppost in rain puddle on asphalt. Lisbon, Portugal

3 comentários

Jorge Xerxes

Bruna,

Maravilhosa reflexão sobre o despojar-se da vida de Mário.

Desse Mário que mora dentro do peito.

Deixar-se ir para a outra margem.

Um Beijo, Jorge X

Anônimo

Engraçado que, eu tenho uma opinião (fundamentada em vivências) desse tipo de coisa. Quando se avisa, é verdade, é que se espera a salvação. Ou seja: parece que há sim a intenção, há sim o sofrimento,que é atroz mas, espera-se, entre lágrimas, um abraço tranquilizador que seja. Mas isso tem de vir rápido. Veloz. Senão, respira-se fundo e mergulha na vontade. Nesse caso, morrer ou não depende do quão competentes foram os planos.

Bruna Maria

Olá Jorge, olá Mayra!

Obrigada pela leitura.

Sim, Jorge, encontramos esse Mário em nós mesmos. Em uns, ele é mais intenso; em outros, ele é mais ameno, mais contido. Nas duas formas, ele existe, e o sentimos. Não parece termos muita escapatória... Obrigada pelo comentário!

Mayra, eu tenho essa impressão, do pedido de ajuda. Pena que, em muitos casos, não é suficiente e o plano vinga. Acho que foi o caso desse Mário aí que, aqui entre nós, é uma impressão minha de um Mário de verdade que, um dia, decidiu partir, assim. Obrigada pelo comentário!

Beijos!