Luís Galego.
Madalena dança num trapézio sem rede mas ama o marido mais do que tudo no mundo. É isso que ela diz – a toda a gente, ao psiquiatra, até aos estranhos – e gosta de o afirmar. Esta convicção é acompanhada por uma inquietação muda e por uma fictícia compostura da voz. Pretende provar que ama o homem com quem vive mais do que nunca. Evita olhar frontalmente pois teme detectar a mais leve dúvida nos olhos do médico que a segue. Teme que o clínico consiga auscultar-lhe o espírito através das múltiplas camadas do seu semblante e que destape os diferentes rostos escondidos por trás das máscaras. Receia que a verdade salte, irreprimível, da sua face, porque quando se procura amordaçar a realidade para que não fuja pela palavra ela tende a escapar pelo olhar.
Madalena é magistrada e a barra do tribunal é para ela um rio que corre mais rápido. É uma mulher cautelosa e tem um enorme sentido de equilíbrio e do limite das coisas. Pensa antes de falar e é atenta, controlada, pulso firme. Parece fria e conservadora e não consegue rir-se de forma espontânea. Aguenta-se à beira do abismo sem cair. Contêm-se e não se atreve a ceder aos seus próprios desejos. Nem às necessidades do organismo – necessidades tais como recostar-se numa cadeira, ou fechar os olhos quando se sente cansada ou com sono. Tem a mente constrangida por regras, considerações, precauções e interrogações. Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície. Carrega às costas um pânico que se deita à noite com ela na cama. Ela sabe que o marido é feito de matéria diferente, uma sensibilidade estranha em carne viva, coração desgovernado, colérico quando contradito e tem que ser constantemente compreendido. São assim os homens, dizem-lhe.
A separação amputa-a, ainda que tenha vivido com ele as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mas a única alternativa é fugir. Faz a mala e escreve um bilhete, explicando que está doente, que vai ausentar-se por alguns dias, e que depois explica tudo. Por agora, a única coisa que pode fazer é sair e pedir colo ao universo.
Madalena segue no seu carro, conduzindo lentamente pela marginal e o mundo está sossegado. Não tem qualquer destino em mente e já nem o peso de um remorso, apenas um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Gosta de conduzir ao acaso, de viajar em direcção ao desconhecido, sem necessidade de etapas frenéticas. Desce a tarde lenta e as lágrimas correm-lhe pela cara, e não são de tristeza. Baixa o vidro da janela do condutor e o sol daquele primeiro dia de Outono brilha-lhe sobre as nódoas negras esculpidas no braço. Sente que pode recomeçar a viver.
Luís Galego
Imagem: enviada pelo autor
Madalena é magistrada e a barra do tribunal é para ela um rio que corre mais rápido. É uma mulher cautelosa e tem um enorme sentido de equilíbrio e do limite das coisas. Pensa antes de falar e é atenta, controlada, pulso firme. Parece fria e conservadora e não consegue rir-se de forma espontânea. Aguenta-se à beira do abismo sem cair. Contêm-se e não se atreve a ceder aos seus próprios desejos. Nem às necessidades do organismo – necessidades tais como recostar-se numa cadeira, ou fechar os olhos quando se sente cansada ou com sono. Tem a mente constrangida por regras, considerações, precauções e interrogações. Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície. Carrega às costas um pânico que se deita à noite com ela na cama. Ela sabe que o marido é feito de matéria diferente, uma sensibilidade estranha em carne viva, coração desgovernado, colérico quando contradito e tem que ser constantemente compreendido. São assim os homens, dizem-lhe.
A separação amputa-a, ainda que tenha vivido com ele as horas mais amargas, mais duras, mais violentas, mas a única alternativa é fugir. Faz a mala e escreve um bilhete, explicando que está doente, que vai ausentar-se por alguns dias, e que depois explica tudo. Por agora, a única coisa que pode fazer é sair e pedir colo ao universo.
Madalena segue no seu carro, conduzindo lentamente pela marginal e o mundo está sossegado. Não tem qualquer destino em mente e já nem o peso de um remorso, apenas um corajoso exercício de sinceridade e menos medo de ter dor. Gosta de conduzir ao acaso, de viajar em direcção ao desconhecido, sem necessidade de etapas frenéticas. Desce a tarde lenta e as lágrimas correm-lhe pela cara, e não são de tristeza. Baixa o vidro da janela do condutor e o sol daquele primeiro dia de Outono brilha-lhe sobre as nódoas negras esculpidas no braço. Sente que pode recomeçar a viver.
Luís Galego
Imagem: enviada pelo autor
6 comentários
Mais um texto Brilhante,Luis!
....Está na altura de nascer o LIVRO!!!Parabéns!!
Rosa Vaz
Parabéns Luis, sensibilidade, delicadeza e perícia nas palavras! Um prazer de leitura, gostei muito! Continua sempre...
Um beijo grande
Luís, Forte e Vibrante!
"Receia que a verdade salte, irreprimível, da sua face, porque quando se procura amordaçar a realidade para que não fuja pela palavra ela tende a escapar pelo olhar."
"Escrúpulos e medos, vincos na alma. O orgulho, instrumento de tortura medieval, escalavra-lhe o corpo, restringindo-lhe os movimentos, sem bóias para se aguentar à superfície."
Um Texto à Altura do Descalabro das Máscaras de Madalena!
Abraços, Jorge X
Madalena... penso que o nome deve ter-lhe surgido espontâneamente, mas não fruto do acaso!
Madalena é um retrato desenhado com enorme sensibilidade, um retrato do caminho interior que uma mulher teve que percorrer até tomar a única decisão que poderia tomar! E haverá tantas a reverem-se nesta Madalena!...
Mais um vez um texto belíssimo onde, desta vez, é alma feminina a ser exposta nas suas feridas mais profundas e doloridas, mas que, paradoxalmente, são também as mais dificeis de decidir tratar!
Um abraço amigo
E há tantas Madalenas por aí!...
Não consegui acabar de ler sem lágrimas! Obrigada.
Beijos doces,
Fátinha
E a vida recomeça [espero]
Um grande texto, Luís.
Grande abraço
Jorge
Postar um comentário