sexta-feira, 25 de junho de 2010

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Bruna Maria - A saia de flores


Sacudia a saia, para os lados, para cima. As flores da estampa caíam por onde as pernas marcavam o espaço. Era como demarcar território. Entre garçons bem humorados, clientes nem sempre curiosos, seguia.

Um pé na frente do outro, descrevia curvas. Jogava o cabelo para os lados, o batom brilhava. Era impossível encarar seus olhos, porque se moviam, rápidos.

De um lado, de outro, mais uma vez, a saia era sacolejada. Depois abaixava as costas, descrevia semicírculos, fazia o impossível. No intervalo do som, tomava fôlego. E quando a música voltava a tocar, os braços logo se moviam, a saia levantava mais uma vez e com o movimento, as flores caiam de novo ao chão.

Quem a via, toda noite no restaurante, como que a entreter os clientes, não sabia que aquela era sua obrigação. Não parecia ser obrigação. Sua graça, seu molejo, sua dedicação em cada passo negavam que ela estava ali apenas para cumprir um contrato, apenas pelo salário. Mas estava. E no momento em que vestia a saia florida, passava o batom rubro, soltava os longos cachos pelos ombros, ela acreditava que só havia aquele universo, as músicas latinas, a ladeira específica de Santa Teresa por onde os clientes chegavam.

Assim, seus pés descalços, colados ao chão, conseguiam alçar voos inimagináveis, incríveis. Quando queria, abraçava com apenas uma das pernas algum cliente que lhe desse um pouco mais de atenção. Ou, para agradar um dos garçons que fosse seu amigo, dançava ao seu redor, deixando as flores aos seus pés, levando-o momentaneamente para longe.

As noites seguiam assim. Chegavam as madrugadas, e o sol, às cinco, no horário de verão, começava a despertar os derradeiros sujeitos que se deixavam cair bêbados no bar do restaurante.

Copos pela metade, bebida velha, petiscos mordidos e caídos pelo caminho. A essa altura seus pés estavam exaustos, as pernas fraquejavam, o batom descorara e os cabelos queriam estar rebeldes. Ela então os prendia rapidamente, corria ao banheiro, lavava o rosto. Pegava sua bolsa, tirava a saia, se desfazia das flores. Vestia um jeans largo, calçava sandálias rasteiras e saía, se despedindo apenas dos garçons que eram seus colegas.

A ladeira lá fora já estava movimentada, o ônibus já subia, o bonde também passava. Ela descia a pé, porém. Queria respirar um pouco de ar puro, sem a fumaça dos cigarros e charutos. E assim seguia, seguia em busca da Lapa, para poder chegar em casa.

Estava exausta, como de costume. Mas à noite precisariam dela e ela necessitava descansar. Precisariam dela e de suas flores pelo salão. Por mais que a maioria dos clientes se fizesse de desinteressado, era preciso que ela estivesse lá, rodopiando, balançando os cabelos, sacudindo a saia. Fazendo com que a música tocasse. Fazendo com que houvesse música.

Então ela chegava em casa e tomava um gole de café, enquanto já era possível ouvir o fluxo de carros aumentando na rua. Mais um dia passaria, naturalmente. Quando fosse início de tarde, ela correria para pagar algumas contas no banco e fazer pequenas compras. E, ao cair da noite, ela se aprontaria de frente para a penteadeira antiga, da adolescência. Marcaria os lábios com o batom vermelho e seguiria para o restaurante, para o palco.

Lá, as flores. Lá, vestiria a saia. E voltaria a sacolejá-la por mais uma boa gama de horas, clientes, garçons, tabaco, bebidas e petiscos. Era a sua obrigação – derramar flores entre um passo e outro.





Imagem: André Claudio Mendonça




4 comentários

Anônimo

Cara Bruna.

Escreves muito bem, isso não se discute. Há ritmo em tua escrita, encadeias com coerência os núcleos dramáticos, o vocabulário possui amplitude e adequação. Contudo... como tantos aspirantes a escritores (e quem não o é hoje em dia?)percebo que pecas no essencial. Esqueces que literatura não é simplesmente um amontoado de descrições (por mais belas, alusivas ou impactantes que elas sejam), literatura é sobretudo narração. Algo está sendo contado, algo quer ser contado, algo precisa ser contado. O excesso descritivo acaba emperrando todo o processo. Percebo que possuis talento. Se atentar para esse pequeno/grande detalhe vais melhorar, e muito teu texto.
Como exemplo do que disse acima, deixo aqui um excerto de um conto de Flannery O'Connor. Contista (também mulher) das maiores.

(...) No escuro, os olhos de Mr. Shiftlet estavam cravados na parte do pára-choque do carro que cintilava na distância. "Minha senhora", disse ele atirando o seu meio braço para cima como se com ele pudesse apontar para a casa e o
quintal e a bomba, "não há nada estragado nesta fazenda que eu não possa consertar para si, aleijado de um braço ou não. Sou um homem" disse com um dignidade triste, "mesmo que não seja um homem completo. Tenho", disse ele batendo com os nós dos dedos no chão para enfatizar a importância do que ia dizer, "uma inteligência moral!" e seu rosto escorregou da escuridão para um raio de luz vindo da porta e olhou para ela como se estivesse impressionado com esta verdade impossível. (...)

Bruna Maria

Olá, leitor!

Fico grata pelo comentário construtivo, inspirador e muito respeitoso. Obrigada! Estarei atenta à sua dica, com certeza.

Apenas, em clima de troca de ideias, deixo uma réplica. Concordo que literatura é sobretudo narração - mas não só isso. Assim quero dizer que acredito na possibilidade da descrição excessiva fazer perder o teor narrativo típico de literatura. No entanto, isso pode ser uma opção, também, com fins estéticos. Literatura, como Arte que é, não trabalha com dogmas e/ou colocações fechadas - assim penso. O que possibilita "experimentos" de estilo (para o bem e para o mal, é claro), e diversidade de escrita.

Quando escrevi esse conto, não tive a intenção de contar sobre algo decisivo, sobre um fato. Apenas quis um ambiente mais sensível, que passeasse pelas pequenas coisas. Daí o elemento saia, flores, os passos - coisas que remetessem a alguma leveza.

Enfim, eis a réplica! =)

Obrigada pela leitura e um abraço!

Anônimo

Dizes que não teve a intenção de contar nada sobre algo decisivo. Ora, em literatura, tudo é e deve ser decisivo. Se tens a pretenção de se firmar como escritora, não como uma simples cronista, precisas compreender que em Arte tudo é comprometimento. Daí sua dificuldade e sua provação. Não passeamos em literatura, como passeamos em outras atividades, e até com uma certa competência e geral condescendência. Em literatura não dispomos deste luxo. Ou fazemos parte do seleto grupo dos melhores ou nada somos. Pode existir, convenhamos, meio médico, meio advogado, meio jornalista, meio professor. Mas meio escritor! Jamais. Achas que Paulo Coelho, Dan Brown, Stephen King ("consagrados") são escritores? É claro que não. Mas eles, em todo caso, não pretendem ou nunca foram capazes de relatar nada de decisivo. Compreendes o que quero dizer? Quanto a experimentalismos, creio que existe um grande mal-entendido e não menor autoengano a esse respeito. A maioria, na impossibilidade de emular os clássicos e na tentativa suicida de atrair a atenção sobre si, usa os pés pelas mãos, acreditando com isso estar fazendo algo de novo. O novo ou o velho em se tratando de alta literatura não existe, pois ela tem o signo do eterno. Pensas acaso que a obra de Shakespeare, Tchekhov, Tolstói, caducaram? E, note bem, foram escritas a bem mais de cem anos! Joice, Kafka, Faulkner, Guimarães Rosa, sabiam muito bem disso. Ou seja, sabiam que o elemento que empresta perenidade a uma obra não está simplesmente em sua forma. Mas antes e principalmente em seu conteúdo.

Abraços e sucesso.

Bruna Maria

Olá.
Compreendo o que você defende e até concordo, por menos que tenha parecido com meu comentário anterior.

Estou longe de achar que podemos passear por Litertura de maneira condescendente. Também não acredito que há meio escritor, ou uma Literatura boa e outra má, mas que haja, na verdade, Literatura, e que isso engloba tudo aquilo que foi escrito com a devida qualidade.
Quanto ao experimentalismo, não vejo nele ponto de chegada (uma vez encarado assim, acaba por se mostrar falho e, em muitos casos, apenas esconde o vazio que há de ideias no texto apresentado), mas, sim, caminho para o escritor pensar a sua própria escrita.
As suas referências são as minhas: Joyce, Kafka, Faulkner, Rosa - são autores que leio e que, como herança, deixam justamente o intuito de não ser condescendente em Literatura, dada a obra de cada um deles, extremamente singular. Então é claro que as obras não caducaram, e, espero, nunca caducarão.
A forma sozinha nada é, apenas casca. Um texto se firma, também, na sua habilidade em associar seu conteúdo a uma forma que lhe seja interessante. Guimarães Rosa sabia que "Grande Sertão: Veredas" não podia ser apenas narrado como uma prosa corrida, simples, apenas contado; e temos a sua linguagem específica. O mesmo vemos em Faulkner. "Enquanto agonizo", para além do conteúdo, vem com uma forma única que nos incita a pensar num plano duplo, entre história apresentada e as implicações formais que são sugeridas. Então, os clássicos apontam: pensar ambos em comunhão.
Eu, como estudante de Letras há anos, consigo falar sobre isso. O difícil é transportar a experiência de leitura, todas as citações, todos os nossos conhecimentos para uma obra de literatura genuinamente nossa. Com isso, digo que é um exercício constante e de aprendizado. Erramos um dia, no outro, tentamos melhorar. Um escritor não nasce da noite para o dia, creio eu.
De qualquer forma, agradeço a atenção dedicada. Ficaria feliz se soubesse seu nome. E sinta-se a vontade para visitar meu blog, conhecer outros trabalhos, enfim.

Um abraço!