quarta-feira, 16 de junho de 2010

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Luís Galego - uma sombra que passa...



Simone, sibilina elegância, rosto singular, intensos olhos azuis, vinda de outro mundo, eu diria que da cena vitoriana, debruçada para a frente, atenta, suspira. Demora-se em silêncio durante o que me parece uma eternidade. Quando recomeça a falar, a sua voz sai calma. “O que eu sinto verdadeiramente, pela primeira vez na minha vida, e com intensa confiança, é que não existe Deus, nunca existiu e nunca existirá. E que estou certa em pensar assim. Polémicas, lutas aguerridas – só isso existe. Seres emaranhados nos seus problemazitos do calendário em Excel e orçamentos. Um mundo atulhado de gente apressada e estéreis discussões, em missões bélicas, lentas, penosas, divertidas e estúpidas, triviais e calorosas, caminhada sem norte, escuros dias em que os corpos se desfazem. Medos, cobardias, misérias, castigos, timidez. Espaços de decepção, claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se frustra e se agoniza numa morte lenta. Um mundo que necessita de um cinema, para as escuras, chorar e secar as feridas expostas. Uma vida que é um romance de cordel, teatral e politico. A esperança de um amor eterno e a promessa de um beijo, mas que culmina em uísque, ódio, em carne viva e raiva acesa. Gente inteligente, mas viciada em Farmvilles facebookianas, que troca Albee, Lorca, Müller, Duras, Yourcenar ou Eça por um chat de interesse nenhum. Nada mais. Afinal um soneto onde todo o homem é uma ilhazinha. Aquela mulher de cabelos brancos que vai diariamente à Igreja, também. As suas expectativas por um Deus são inócuas, só podem ter existência naquele espaço. Não existe nenhum Omnipotente. Nenhum grande ser vive lá fora. A nossa vida real é composta de imaginação e de ficção. Existe esta conversa, este momento e é tudo. Aqui e agora, por exemplo, existe apenas este quarto, existes tu e eu a conversar, nesta York House, lugar poliglota que se ergue luxuriante nesta cidade, onde nenhum de nós mora, mas também e por vezes o lugar da mais arriscada solidão. Gosto deste lugar, como gosto de um concerto para violino de Tchaikovsky, porque “está lá tudo”, estão lá as viagens que não fiz. Nunca nos vimos antes. Ontem ao entardecer conhecemo-nos e falámos. Um arranjinho. Sete minutos mais cedo ou mais tarde e não teria acontecido. Cruzarmo-nos numa rua anónima tão estreita não admira que nos tivéssemos sentido atraídos, uma rua afinal tão humana e desinibida; ficámos enredados numa torrente sentimental, aninhados em sorrisos, até a noite cair para dentro de nós. Tu, homem, assistente social, Eu, mulher, militar da Força Aérea. Os nossos beijos representam o fim de um estereótipo, um soco no puritanismo, o pó de arroz da poesia, o limpar da poeira da melancolia. Precisava de meiguice, carinho, sentimentalismo, da volúpia do desconhecido, do veludo de um final de dia e acendeu-se-me uma lareira. Apetecia-me um homem com queda de água de mulher por dentro, como me recorda a famosa Mátria. Suspirava por alguém que quer mais da vida, que exige felicidade, que teime em andar por mares nunca dantes navegados. Sei que dizer isto parece uma banalidade que carece de rodapé. Falámos de livros e quadros, das artes e da bela cultura e até da Ilha dos Amores e de outros nostálgicos armazéns de ternura. Esse é o momento sagrado. Se houver um sacramento é esse. Será essa coisa a que chamam destino? Pode ser. As coisas que nos acontecem na vida, sim. As nossas memórias, sim. Os nossos desejos, sim. Os poetas. A arte com romantismo. A Sinfonia Fantástica de Berlioz. As suites para violoncelo pelo Casals. O Graham Green e o seu The End of the Affair, com o qual, pelos vistos, ambos estremecemos na nossa adolescência. O Mar, de Miguel Torga, que nos deslumbra a infância. Se temos filhos, então os nossos filhos. E todos aqueles que amamos. Talvez todos aqueles que já estimámos. Mas nada mais. Andamos por cá uma vez e depois acaba-se tudo. “.
Interpelo-a com uma frase surripiada à feiticeira cotovia Natália Correia “Não jurarei que qualquer Deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem Deuses”. “E preciso acreditar que existe algo após a morte”, acrescento. “Não te posso perder, não quero desistir de ti”, digo baixinho. “Não foi em vão, não foi inútil, foi tão bonito o nosso encontro, que embora tenha vindo num tempo ingrato, chegou no tempo do coração.”, digo-lhe com os olhos brilhantes.
“Para mim ter vivido esta noite já é uma jóia valiosa que me foi oferecida, não obstante a minha existência nos últimos meses ter sido uma marcha cansativa, um suor no rosto, um trabalho cinzento de que o Deus em que precisas de acreditar se ausentou.”, responde-me, com um quase sorriso.
Simone levanta-se devagar e caminha até à janela. Encosta a face ao vidro da janela e olha para o seu reflexo. O que ela gosta de Lisboa, palco de projectos sempre por acabar, mas sua tão grande cidade, onde nunca viveu. Uma luminosidade especifica de uma cidade que parece vienense; compara o que vê a uma encenação de O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. Uma ambulância corre a toda a velocidade as ruas de Santos-o-Velho, com a sua luz a brilhar, reflectindo-se nos rostos ingénuos das crianças que entram quase de madrugada nos colégios e no corpo de um filho de ninguém vomitado à porta da Embaixada do Luxemburgo. É hora de Simone apanhar um táxi para o IPO. Despede-se de mim, estranhamente sem pressa, contando-me um último segredo. Uma lágrima, um beijo e um abraço, a impotência da vitória do amor perante o medo da morte. Tal como um bando de pássaros voa para longe, sem levar nada. E é nesta cidade apertada entre um hotel de sonho e uma instituição oncológica que a sua vida se transforma tão só num punhado infantil de areia ressequida, num som de água ou de bronze e numa sombra que passa, como escrevera um dos seus poetas…


Luís Galego







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4 comentários

Anônimo

.....para este texto, deixo-te com outro texto:

........................
Chega mais perto e contempla as palavras,
Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
E te pergunta, sem interesse pela resposta,
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade


Um abraço, co chave:)
Priscila

Vera Santana

Luís,

Gosto do texto, identifico-me com ele, nos sentimentos e nos lugares da cidade, da literatura e da música. Fruí-o porque nele ecoam pedaços de outros textos, pedaços de mim, Em Carne Viva.

Go on!

Vera

Luis Esteves

Caro Luís Galego

Este texto é muito forte! Retrata bem a sofreguidão de uma vida que tem de ser vivida, antes que o tal Deus que pode ou não existir, se lembre de a levar para o infinito.
A York House, Santos-o-Velho, têm por mera coincidência, muito que ver com a minha vida e com muitas experiências pessoais muito fortes.
Mas não é por isso que me identifico com o texto, que gosto dele, que o acho verdadeiramente empolgante. É porque ele me vai conduzindo a algo que se vai pressentindo, por vários caminhos em simultâneo, sendo que o destino final só poderia ser mesmo o que foi!
Magnifico!
Um abraço

Anônimo

"Gente inteligente, mas viciada em Farmvilles facebookianas, que troca Albee, Lorca, Müller, Duras, Yourcenar ou Eça por um chat de interesse nenhum. "
Como isto me assusta...
bj
Jasmimdomeuquintal