Capítulo 01.
Revestido de trepadeiras.
Já havia, em 1990, uns dois anos que eu aproveitava duplamente as férias de verão. Minha irmã ousara montar um restaurante-bar atípico na Praia do Sudoeste, em São Pedro da Aldeia. Casada há pouco, com um filho bebê, precisava de ajuda para preparar e servir os lanches e bebidas fora do vulgar que criava.
Aceitei seu chamado e foram inúmeras as vezes que percorri, prazerosamente, o extenso gramado onde se espalhavam as mesas com guarda-sóis fixos, de sapê.
No fundo do terreno, entre os canteiros de flores e folhagens, o chalé colonial revestido de trepadeiras onde moravam. Nele também eu me recolhia nesses meses de calor e trabalho cheios de imprevistos.
Uma recompensa não marcada no relógio
Desafios trouxeram muitas vitórias a este meu corpo, que transitara sem alma através dos mares fictícios e reais. Como um pirata eu pensara, urdira e maquinara, tantas vezes trêmulo nas noites que se prolongavam pela madrugada.
Não que a dignidade fosse insuficiente para carregar a palidez: no meu rosto comum nenhuma expressão de sanidade deixara de se divertir com a morte.
Eu era um navegador solitário e, a felicidade, uma recompensa não marcada no relógio.
Do silêncio ecoam ruídos
Gosto de cismar à-toa, quieto, somente sentindo o vento que, mais livre, sopra em várias direções sem perder a integridade. O mar - também íntegro, ainda que imprevisível - reboliça a minha memória e o desejo de movimentar-me sem qualquer previsibilidade.
Não sei a razão do meu silêncio interno. Em minha cabeça ecoam ruídos, um dedilhar suave sobre o piano, o som de folhas secas pisadas. Minha boca tem estado vazia de palavras, ceifada por uma incapacidade quase absoluta de me comunicar.
Um diário de bordo
Aproximo-me de quem quer que seja geralmente com cautela. Paira sempre a ameaça de uma reviravolta e não sou afeito a surpresas. Por mais que aprecie os jogos de estratégia, não faço da vida um jogo.
Assim é a minha escrita. Nela a palavra se transforma e cresce; ilumina-se na folha e salta, como num letreiro: na verdade, indicações ligeiras para o leitor que deseje seguir-me por seus próprios meios.
Creio ser assim que a leitura e a escrita formam, juntas, um ambiente de delícias. E o que escrevo, finalmente, nada mais é que um diário de bordo.
A marca firme de vila de pescadores
São Pedro da Aldeia parece menor do que é. Suas ruas se alastram por toda a península e quase todas vão dar numa praia, algumas praticamente selvagens. Tem um centro urbano pequeno e ordenado. Embora muito próxima de Cabo Frio, conhecido balneário, não toma a feição dos que a freqüentam somente nas férias. Todos podem chegar, desde que não pretendam afetar seu jeito de ser. Não tem edifícios altos e guarda a marca firme de vila de pescadores.
A 5 km do centro, a Praia do Sudoeste carrega o nome do vento que a transforma: as águas extremamente salgadas e plácidas da lagoa encrespam-se e as ondas pequenas e abruptas expulsam, das águas, pescadores e banhistas. Chegam à rua, tornando nova a paisagem.
Midas: Maria, simplesmente
Num desses dias de vento forte eu a conheci, próximo à hora do pôr-do-sol (cenário grandioso, na Praia do Sudoeste). Sentada no meio-fio, ela contemplava. Embevecida, mas sem espanto. O vento a despenteava e seus cabelos pareciam ter rumo, ou função, naquele contraponto ao balanço das folhas das casuarinas.
“Olá”, cumprimentei-a. “Sou o Augusto”.
“Maria Pia. Micas...” “Maria, simplesmente Maria”, disse-me.
Algumas palavras são acordes que pulsam: um marulhar desce pela garganta, deixando gosto de música na boca. Empoeiradas palavras, não: provocam sensações mornas e parecidas, quando entram pelos ouvidos e deixam neles o timbre do mundo.
Assim ela se apresentara: um mundo vibrando em escura calma. Micas (apelido que herdara da avó portuguesa)e tantas outras Marias se reuniam nessa mulher que abraçava desafios e não fugia das mudanças. Uma diva, que aperfeiçoava sua humanidade através de transformações e coloria o novo, dando um toque refinado e clássico ao ar de modernidade que lhe conferia a civilização.
Resplandecia a cada renascimento e sua aura tocava: ninguém permanecia o mesmo depois de conhecê-la. Midas, não Fênix: nunca se deixara dizimar ou queimar por inteiro.
Imagem: Praia do Sudoeste, São Pedro d'Aldeia. Autor ignorado
CONTINUA
Imagem: Praia do Sudoeste, São Pedro d'Aldeia. Autor ignorado
6 comentários
Olá Sonia!
Fiquei Muito Contente ao encontrar o primeiro capítulo de Sua Excelente Obra "Midas" aqui no Letras.
Um Beijo! Jorge X
E eu muito contente por vc ter-me lido, escrito...
... e voltado (que férias grandes! Tomara tenha aproveitado bem)
Obrigada pelo elogio, meu amigo. Não é tanto...
Bjs
E eu senti os meus ventos soprarem, como se estivesse na praia contemplando Midas.
Um grande abraço com vento e sol e música e alegria!
jorge
Gostei muito da forma como está sendo escrito. Causa uma certa estranheza - e é isso que nos leva adiante.
Parabéns, Sonia.
E boa viagem (um romance, afinal, é isso).
Jorge, que bom, fico feliz! Como isso alegra a malta (como vcs dizem aí), que ousa fazer um lançamento desses.
Grande abraço musical e alegre, eólio e ensolarado!
Parreira, querido, uma honra tua leitura e comentário. Obrigada!
Viaje junto, ficarei feliz.
bjs
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