terça-feira, 15 de junho de 2010

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Resenha 4 - Concurso literário 'Desvendando um conto' - Por Adelina Velho da Palma

RESENHA SOBRE "UM ÚLTIMO TRAGO"
Por Adelina Velho da Palma



Trata-se de uma história contada na primeira pessoa (eu) à laia de missiva, feita de um misto de desabafo, confidência e provocação.
A trama em si resume-se a um incesto, incesto esse que é perpetrado numa geração e repetido na seguinte, passando o protagonista de violado a violador.
O tema em si é um pouco estafado. O incesto é uma prática ancestral já sobejamente explorada. Todavia, "Um último trago" está muito bem conseguido, pois paira acima da vulgaridade do cinismo exagerado e do arrependimento piegas. Com efeito, o tom em que é feito o relato é equilibrado, exala serenidade e desprendimento, sem contudo atingir a insensibilidade. Tem qualquer coisa de fatal, de inexorável, como se o destino dos envolvidos estivesse previamente traçado, sobrepondo-se a quaisquer resquícios de vontade. Esta irrompe somente no último parágrafo, ainda que com uma certa timidez, que leva o protagonista a pedir um perdão antecipado à progenitora morta.
É essa mesma progenitora que (dado ter amado o filho ainda antes dele nascer) desencadeia as relações incestuosas. E é também ela que, ao retorquir com absoluta indiferença ao remorso inicial do filho/amante, o transforma num "aluno exemplar". A partir daí, mestra e pupilo vivem a relação impúdica com naturalidade, a ponto do nosso herói desejar que ela se torne pública. Desejo que a mãe/professora, com a sua maior experiência de vida, declina sem hesitações e com sustentado fundamento. E assim vão vivendo os dois, isolados de tudo e todos, suportando os resmungos "enraivecidos" e olhares reprovadores do resto da populaça.
Contudo, apesar da aparente candura do amor incestuoso, o protagonista não deixa de lhe reconhecer um certo carácter de ignomínia, materializado na geração e nascimento de sucessivas crias anormais, marcadas pelo estigma indelével da consanguinidade. Crias essas que são, uma a uma, mortas pelos progenitores.
No entanto, um dia, o milagre acontece. Nasce Lili, uma "bonequinha" perfeita. E aí o leitor pergunta~se com surpresa se o casal de amantes desejaria descendência. E percebe o logro da situação. Lili, de início amada por pai e mãe, acaba por ser olhada com despeito pela progenitora. Afinal a mãe/mestra já tinha deixado de o ser. Os papéis entre mãe e filho haviam-se invertido. E, perante a ameaça de um novo amor, mais jovem, sensual e igualmente incestuoso, que lhe vai roubar o amante, só resta à progenitora o derradeiro consolo de afogar o ciúme no esquecimento da morte.
Para terminar, saliento o paralelismo muito interessante que o autor estabelece entre tabagismo e sexualidade, que não é logo evidente, mas que ganha significado e relevância no desenrolar desta notável narrativa.




Imagem: SmokeWorks #41, de Mehmet Ozgur





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