terça-feira, 15 de junho de 2010

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Sônia Pillon - Eles chegaram!

CONTOS DE SOLIDÃO

























O dia mal tinha amanhecido, mas o pequeno vilarejo já estava acordado. Na feira livre, os vendedores já gritavam as pechinchas do dia, desde o peixe fresco até as verduras, legumes e frutas mais viçosas. Donas de casa de lenço na cabeça e sacolas de pano examinavam atentamente a qualidade dos produtos, comentando as ofertas umas com as outras.

De repente, um grupo imenso de pessoas adentra o vilarejo, numa espécie de invasão silenciosa. Homens e mulheres, velhos, jovens e crianças de cabelos negros e lisos e tez amorenada caminhavam de cabeça baixa, andar arrastado, mas contínuo. Eram indígenas, expulsos de suas terras pelos posseiros, mineradores capazes de matar ou morrer por uma pepita de ouro!... O sofrimento está estampado em seus rostos, assim como a desesperança no olhar. Muitos não conseguem segurar as lágrimas...

À medida em que se aproximam, uma onda de medo toma conta da população. Eles estão sujos, com roupas rasgadas, e há muito feridos entre a multidão de retirantes... Muitos os olhavam com repulsa. Ao descerem na cidade, uns poucos separam moedas para alimentar as crianças famintas, mas não há muito que podiam comprar, tampouco leite...

Em poucos minutos eles se espalham pelo vilarejo, pela feira, pelos poucos restaurantes e padarias. Muitos sentam nas calçadas e choram copiosamente e falam em uma língua desconhecida, elevando as mãos aos céus, como se não entendessem o porquê de tudo aquilo...

Alguns comerciantes abrem suas portas, mas outros os espantam como cães sarnentos, lançam pragas... As mães imploram por comida para seus filhos, mas a população local como que some por encanto, correndo para suas casas, apavoradas, puxando os filhos pelas mãos... “Eles chegaram! Depressa, fechem as janelas e portas! Bando de vagabundos!”, vocifera uma velha aldeã, insensível à tragédia.

A jovem Maria, que chegou à vila para comprar legumes e chás, sente um aperto no peito ao ver tanto sofrimento. Lágrimas escorrem sem que ela se dê conta. De repente, ela vê um menino de uns cerca de quatro anos no colo de uma mãe aflita e pergunta o que aconteceu. “Mataram o meu homem! Mataram o meu homem! Homem branco acabou com aldeia, queimou tudo, até criança viva! Um horror!!! Não temos mais casa, nem comida, nem nada! O que vai ser da gente?!”, pergunta a índia, num português quase ininteligível.

Maria estendeu as mãos em solidariedade, e os levou para o chalé simples onde morava com os avós. Uma sopa quente, um banho e umas roupas limpas é tudo o que eles precisam agora, pensou. Eles ficaram por lá uns 15 dias, e depois a índia se foi com o filho, com um sorriso de agradecimento. Maria nunca mais os viu... Já se passaram mais de 30 anos, mas a imagem daquele dia terrível nunca mais saiu da sua memória...


Sônia Pillon





Imagem: Paula Lourinho







1 Comentário

SÔNIA PILLON

Esse conto foi inspirado num sonho que tive recentemente e que me emocionou... Sangue tupiniquim nas veias!... :)