VII
Na terça feira Clarissa chegou à faculdade bem cedo. Foi direto até a sala de professores, abriu seu armário e retirou todas suas coisas de lá. Passou para a imensa sacola, deixou em cima da mesa e foi ter com o diretor.
- Bom dia Diretor!
- Bom dia Clarissa!
Ele parou o que estava fazendo e olhou para a linda professora a quem sempre havia admirado. Ela estava com o olhar triste. Ele já sabia o motivo. Neuza havia espalhado na segunda feira o porquê da ausência de Clarissa. Maurício a abandonara. Gente! Como pode um homem abandonar uma mulher dessas? Ele sabia dos casos de Maurício e nunca entendera aquilo. Mas nunca sabemos o que se passa na cabeça de outro ser humano. Mal sabemos o que se passa em nossa cabeça!
- Diretor! Vim entregar minha carta de demissão e a de Maurício também! Ele pediu para entregar por ele, espero que o senhor aceite.
Fingindo não saber ainda do que se passava, o Diretor falou brandamente:
- Por que os dois vão sair?
- Bem! Se o senhor ainda não sabe, Maurício me abandonou sexta feira à noite. Foi embora. Pediu para que lhe entregasse a carta. Aí decidi que também não quero mais ficar aqui, onde todos sabiam da traição dele e nunca me avisaram. Também fui traída por vocês todos. Então aqui está.
E colocou dois envelopes em cima da mesa do diretor e saiu da sala dizendo:
- Obrigado pelo tempo que passamos juntos.
Quando ela fechou a porta o diretor pensou que às vezes o mundo trai as pessoas, e as pessoas traem outras pessoas por terem sido traídas pela vida. No caso de Maurício ele não entendia o motivo. Clarissa era perfeita. Inteligente, linda e competente. Sentia muito de perder os dois. Eram excelentes profissionais.
Ao chegar ao carro Clarissa pensou o que deveria fazer agora. Rodou pela cidade que àquela hora da manhã estava em polvorosa, hora em que todos os seres vivos capazes e incapazes estavam nas ruas, indo e vindo para algum lugar específico. Ela não sabia para onde ir. Rodando sem destino chegou ao local onde estava o barco que a levara ao mar no sábado. Olhou o interior do barco e lá estavam os sacos de lixo deixados por ela. Esquecera-os lá. Pegou os sacos e olhou para eles como se eles fossem os culpados de seu infortúnio. Ficou com tanto ódio dos sacos que queria destruí-los. ‘Como fazer para destruir um plástico tão resistente?’Decidiu que se os queimasse eles sumiriam de sua vista. Pensou que deveria ter algo que acendesse no carro. Voltou com os sacos na mão. Olhou no porta-luvas e encontrou um isqueiro, não sabia muito bem porque estava lá um isqueiro se nem ela nem Maurício fumavam. E aquele era um isqueiro de fumante. Mas para o que queria serviria. Acendeu o isqueiro e aproximou o fogo nos sacos. O plástico começou a derreter e sumir rapidamente. Encolhia e murchava depressa à medida que o fogo aumentava. Ela permanecia com o isqueiro aceso encostado nos sacos que se consumiam. Um cheiro forte se espalhava no ar. Plástico fede muito quando queima e a fumaça é muito preta. “Por isso devem ser reciclados, pensou ela, isso polui o ar de maneira irreversível’. Quando os sacos queimaram e sumiram em pequenos pedaços de algo fedorento, ela pisou nos restos destruindo e misturando com a areia o pouco que ficou, da espécie de cinza dura, resultante do processo químico do fogo e o plástico. Com isso ela pensou destruir o motivo de sua dor. Mas que nada! A dor permanecia lá!
Sentou-se na areia molhada e ficou olhando para o isqueiro em sua mão. Era dourado, bonito. Virou-o e viu um nome gravado. Ruth. Quem seria Ruth? Não conhecia ninguém com esse nome. Olhou o mar, as águas terminavam nas rochas com um pequeno estrondo, e vinham molhar a areia da praia onde estava. A maré estava baixando. Logo a areia iria ficar solta. Era melhor sair com o carro dali antes que não pudesse mais fazer isso. Seu carro não era exatamente um bugre para andar na areia solta. Entrou, colocou o isqueiro de volta no porta-luvas e arrancou.
Na garagem de casa ela se lembrou do isqueiro. A dor voltara. Pegou o isqueiro do porta-luvas e levou consigo para o apartamento. Ali sentada no sofá onde Maurício ficava todo dia para assistir TV, enquanto ela preparava um lanche ou fazia alguma outra coisa, seu pensamento parou no objeto dourado em sua mão. ‘Ruth! Quem seria?’
Um Celular tocou. Não era o seu. Ela não mudara os toques como Maurício fazia para saber quem estava ligando antes de atender. O toque de seu celular era o mesmo para todo mundo. Mas o dele tinha um toque para cada grupo de pessoas, assim ele sabia de antemão quem ligava, ou de onde ligavam. A música do toque era Love Me Tender de Elvis Presley. Olhou no visor do celular e dizia: Ruth. Ela nunca pegara o celular do marido para olhar quem ele tinha na lista. Não precisava saber com quem ele se comunicava. Ela confiava nele porque o amava muito! E como ela, ele tinha uma lista imensa de alunos, professores, amigos e parentes na memória de seu celular. Às vezes ele dizia, estou precisando de um celular com mais memória, tem muita gente aqui. E ria com aqueles dentes lindos que tinha. Como ela o amava!
O celular continuou tocando até parar. Deve ter caído na caixa postal. Ruth. Ela tornaria a ligar por certo. Será que deveria atender? Saberia quem era Ruth.
Estava com um vazio no estômago. Então lembrou que desde sexta feira não comia nada. Nada mesmo. Será que tomara água em algum momento? Não lembrava. Achava que não. O celular tocou novamente. Love Me Tender. Pegou o aparelho e apertou o botão. Ficou em silêncio ouvindo.
- Oi querido! Que houve? Está me ouvindo? Por que não ligou desde sexta feira? Responde homem!
Clarissa apertou o botão. Desligou. A dor no peito era muito grande.
Novamente tocou o celular. Desta vez falou:
- Alô!
- Desculpe foi engano.
Tocou novamente.
- Alô! Aqui é Clarissa. Ex-esposa de Maurício, quem fala?
- Olá! Meu nome é Ruth. Porque o celular de Maurício está aí?
- Ele o esqueceu. Foi embora sábado e o deixou aqui.
- Foi embora? Para onde?
- Não sei. Ele me abandonou e saiu sem dizer para onde ia.
- Ok! Obrigado!
O estalido de tuuu...tuuu...tuuu... ficou no ouvido de Clarissa por muito tempo. A dor estava diminuindo agora. A cabeça não doía mais. O peito ainda um pouco. Pegou o celular, a pasta do marido, alguns objetos pessoais e desceu com eles até o incinerador do prédio. Lembrou que o celular não poderia ser jogado no fogo. Abriu o aparelho, retirou o chip de dentro e o jogou no fogo junto com os demais objetos. Aquele incinerador era para papéis e lixo seco. Tudo queimou rapidinho. Voltou ao apartamento.
Estava com as mãos geladas. Na cozinha abriu a geladeira e olhou. Havia muita coisa ali. Maurício sempre foi bom de garfo, então todo dia enchia a geladeira de tudo que gostava. Hummm! Que fome! Pegou algumas frutas, um iogurte e colocou na mesinha da cozinha. Comeu tudo. O vazio do estômago foi preenchendo. Mas o vazio na alma era imenso! No entanto a dor sumira. Nem a cabeça nem o peito doíam mais. Será que iriam embora de vez?
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