III
- Amor! Estamos casados há oito anos. Estamos com o apartamento e carro pagos, móveis também pagos, que tal agora um filho? – falou Clarissa meigamente.
- Não minha querida! Ainda não. Somos jovens, podemos agora aproveitar um pouco a vida. Vamos viajar e conhecer lugares, afinal depois de termos um filho não será possível fazer isso por muito tempo. Ainda é cedo para isso.
Clarissa concordou. E viajar era uma coisa que ela gostaria de fazer porque sempre estivera presa em casa e no trabalho.
Mas o tempo passava e as viagens não eram planejadas. Pelo contrário, quando ela falava sobre isso, ele desconversava.
Uma noite Maurício ligou dizendo que chegaria mais tarde em casa, porque tinha uns trabalhos para corrigir na faculdade.
- Não se preocupe com o jantar, como alguma coisa por aqui mesmo.
Clarissa estranhou um pouco, mas logo aceitou o fato porque às vezes ela também tinha vontade de lá ficar para corrigir os trabalhos, evitando o trazer todos aqueles calhamaços de papéis para casa. Aproveitou para descansar e assistir um filme, já que não teria de fazer o jantar do marido. Deitou após o filme e adormeceu. Nem viu a hora que Maurício chegou.
A rotina de trabalho no vai e vem de faculdade-casa, casa-faculdade, o tempo foi passando. Muitas outras noites Maurício ficou para corrigir trabalhos, provas, ou para reuniões de professores. Virou rotina esse costume e Clarissa nem estranhava mais. Como ela só ministrava aulas nos períodos matutino e vespertino, nunca foi necessário ficar na faculdade para isso.
Mas na véspera do dia do professor, sua amiga Neuza da assistência social, veio lhe pedir uma ajuda para organizar a festa do dia seguinte que seria dada em homenagem ao corpo docente. Como Maurício já havia avisado que ficaria lá até mais tarde, ela aceitou o convite da amiga e nem voltou para casa. Ficou direto depois de sua última aula da tarde. Foi para a sala de professores onde estava o pessoal que iria ajudar na arrumação e entusiasmou-se com os preparativos. Nem viu o tempo passar. Quando percebeu já passava de onze horas da noite.
- Nossa! – falou para a amiga – preciso ir - Nunca fiquei tão tarde fora de casa.
Pegou sua imensa sacola onde carregava todo um arsenal de coisas necessárias, inclusive os trabalhos que iria corrigir em casa, e saiu apressada. Lembrou-se, no entanto, que Maurício deveria estar corrigindo provas ou trabalhos em algum lugar, já que a sala dos professores estava ocupada com os preparativos da festa. Seria uma benção, porque tomar ônibus há essa hora era difícil demais. E o carro sempre ficava com ele. Parou para pensar onde estaria o marido. Talvez em uma das salas de aulas. Seria um trabalho gigante da parte dela procurar por ele nas salas. O campus da faculdade era mesmo muito grande, não saberia nem por onde começar, já que nunca teve a curiosidade de perguntar a Maurício qual era sua ala no período noturno. Mas havia o quadro onde indicava as turmas por curso. Lá saberia onde ficavam as turmas dele. Desceu um lance de escadas que levava ao térreo e foi até o quadro. Nossa! Nunca percebera como era imenso aquele quadro com uma proteção de vidro, para que os engraçadinhos não ficassem riscando as listas de alunos das turmas. Viu que havia dez turmas do curso de direito, curso que seu marido dava aulas. Todas as salas no segundo andar. Bem, serão apenas dez salas a procurar, pensou otimista. Nisso o celular na bolsa tocou.
- Alô! Clarissa?
- Sim amor! Onde você está?
- Estou ainda na faculdade. Não se preocupe, vou sair com alguns colegas para beber um chope, fique tranqüila se eu demorar um pouco mais. Ok?
- Você está na faculdade? Onde? Qual ala?
- Ora, na de sempre amor!
- Sei! Mas onde fica?
- Agora estou na portaria saindo com os amigos. Até mais querida! Estou indo.
Clarissa olhou para a portaria. Não havia ninguém. Ela estava de frente para a portaria. Correu e olhou para os lados. Viu um grupo de pessoas e gritou:
- Hei! Estou aqui!
As pessoas olharam para ela rindo e disseram:
- Ok Clarissa, estamos vendo que você está aí. – falou um jovem que era professor de estatística.
- O Maurício está com vocês?
- O Maurício? Ele não veio hoje para a faculdade. Aliás, acho que ele não dá mais aulas à noite não?
Clarissa olhou para o rapaz sem entender muito bem. Como Maurício não dá mais aulas à noite?
- Bem! Desde quando ele não dá mais aulas à noite?
- Ora! Há mais de um mês! – falou Neuza, a amiga que a havia convidado para ajudar nos preparativos da festa.
- Puxa! É mesmo! Desculpem, mas com essa vida corrida, às vezes me esqueço de coisas assim. Alguém vai para o lado de minha casa?
- Eu vou! – falou Valéria a professorinha nova do curso de letras – posso levá-la se precisar.
- Aceito! Essa hora é triste tomar ônibus.
- Se é! Até amanhã pessoal.
- Até amanhã!
Clarissa chegou ao apartamento, tomou um banho e sentou-se pacientemente. Queria ver a hora que o marido chegaria. Ela nunca se preocupou em olhar para isso, afinal seu casamento era baseado no amor verdadeiro, porque se preocupar com coisas tão pequenas, como a hora do marido chegar em casa? Mas essa dele não estar dando aulas à noite há mais de um mês, e justamente neste período foi quando ele mais precisou ficar corrigindo provas e trabalhos fora do horário, isso a fez pensar. Certos detalhes que vinham acontecendo em sua vida ultimamente podia ter alguma relação. Embora ela estivesse sempre disposta para o sexo, Maurício chegava do trabalho, e às vezes mesmo sem tomar banho, deitava e dormia sem nem lhe dar sequer um beijo. ‘Estava cansado de tanto trabalho’, pensava, e deixava por isso mesmo. Quando o convidava para saírem, um jantar, um cinema, uma pizza, ou qualquer coisa que fosse a resposta era invariável: "Estou cansado".
Será que estava cansando dela? Estava cansado do casamento com ela?
1 Comentário
Ah, tá. Esse Maurício explica muito o comportamento da Clarissa!
Interessante.
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