quinta-feira, 26 de agosto de 2010

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CONTINUAÇÃO DE UM DISCURSO ETERNO - Milena Martins

...Era como uma manhã cinzenta depois de uma noite tempestuosa. Porque era uma manhã cinzenta depois de uma noite tempestuosa, e nada é além do que é. O asfalto das ruas estava molhado como quem está triste. Porque o asfalto das ruas estava molhado. E quem está triste sou eu. As carcaças dos prédios não me falavam nada, porque não falam nada. Estavam paradas me impedindo de ver além. Porque estarem paradas é o que são e tudo o que podem é impedir o além de ser visto. Tudo era tão o que tudo era que o sentido de tudo não era. No fim, tudo é só tudo e isso é pouco pra quem esperava mais de tudo. Nada era pequeno, porque tudo tinha o tamanho que cada coisa podia ter. E tudo era cinzento e tudo tinha sido chuva. E eu tinha os olhos em alguma coisa pequena e cinzenta depois da chuva, mas eu queria pôr os olhos no infinito, porque isso era poético como tínhamos querido ser. Só que o infinito está além de mim. E além é aquele espaço que eu não vejo por entre as carcaças mudas desses prédios parados frente a minha visão...

...Notei que havia uma palavra ilegível na minha linha. E eu não conseguia ler, eu não conseguia. Eu não podia. E nada mais naquela frase significou. Eu escrevi o que eu não soube ler e nada mais teve sentido depois disso. E aquela palavra morreu, porque uma palavra é palavra se significa, e a palavra escrita nasce pra leitura. E eu não podia ler a palavra escrita, então ela era letra estranha desenhada na minha linha. Sem sentido. Sem que eu a pudesse ter sentido...

...Eu me lembro de irmos andando até o ponto de ônibus e falando e falando da existência de tudo o que negávamos. Tínhamos quinze anos. O ônibus ainda está lá. Você é que não existe mais. Somos lembrança. E lembrança é aquele esforço de não despossuir o que não cabe nas nossas gavetas. E lembrança é aquele espaço entre o que não cabe nas nossas gavetas e o que não some por entre as nossas posses esquecidas...

...Não havia vento naquela manhã, porque nem manhã havia. Era tarde e eu queria explicar o tempo. Eu escrevia pra explicar o tempo. Eu tinha inventado a chuva e as ruas e os prédios, porque tudo isso me parecia tão mudo e eu queria o silêncio dos nossos instantes de palavras de volta. Eu estava sentada a uma mesa vazia olhando o tudo, que é tão vazio quanto aquilo que não sabemos existir. Eu não sabia que era tão difícil olhar o que eu sempre tinha visto. Eu não sabia que havia algo no que eu sempre tinha visto que eu ainda não tinha visto. E eu não sabia que esse algo não seria você. E eu não sabia que eu não teria mais você pra dizer que tudo o que buscamos era nada além do que eu já conhecia...

...Eu já soquei a cama, eu já bati no ar, eu já chutei cadeira e tudo isso era você. Eu espanquei, soquei, atirei você da janela, bati tanto na sua cara que deixei sangrando, arremessei a sua cabeça na parede até você cair e depois taquei no chão muitas vezes essa coisa dura que chamam de crânio. Eu bati em tudo o que podia ser você em mim, pra tirar você de mim. Eu quero tirar você de mim. Você não sabe a raiva que essa saudade me dá...

...Tem um parágrafo da Clarice que eu queria mostrar pra você. Ontem passei pelo andar onde você ficava e vi aquele seu amigo que te seguia. E eu também te seguia. Eu queria contar tudo isso a você. Mas eu não posso mais...

...Eu não posso mais ler porque nada mais tem sentido. Tudo só pode ser sentido. E eu sinto a sua falta. Tudo é a sua falta. E você é tão pouco no mundo. É gente. Não sabe nada porque não sabe ver que tudo está aqui, tudo é o que somos, nós somos os sentidos, nós somos tudo. A existência é só porque nascemos. A existência acabará junto conosco. Nós somos criadoras da existência, você e eu. E eu me lembro que queríamos ser especiais mergulhando em nada quando tínhamos o mundo todo ao alcance das mãos. E que nos iludimos na crença de sermos pequenas, pessoas de mãos pequenas. E eu me lembro que, essa tarde, eu descobri que não havia manhã, nem há tarde e nem haverá noite, porque só existe completude...

...Estranha essa descoberta de todas as coisas quando me falta a parte de mim que deixei com você. Estranho esse saber-se tudo quando me falta o que poderia me dar sentido. Estranho entender só agora que não é em você que está o meu sentido...

...Você não era como eu imaginava. E isso era bom. E isso ser bom é que chamam amizade. Mas chamam tantas coisas do que não são que eu não sei mais o que posso chamar de verdade. Você devia saber que não há verdade, porque eu disse a você a verdade que você chamou de certa. E eu devia ter alertado que não há certeza, porque nem tudo era como eu imaginava. Você não era. Você nem deve ter visto que eu não era como você imaginava. E que isso devia ser bom...



Conto do livro Promessa Vazia (Multifoco Editora, 2010)

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