domingo, 22 de agosto de 2010

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DESVENDANDO A FLOR-DO-LÁCIO - Denilson Neves

Sempre tive curiosidade de entender, integralmente, a famosa frase tão citada pelos escritores, poetas, jornalistas e homens cultos em geral: “Última Flor-do-Lácio, inculta e bela”. A expressão Flor-do-lácio, como um sinônimo para a língua portuguesa, há tempos já se tornou lugar comum entre os literatos, e a tal ponto se popularizou que não vejo longe o tempo em que será usada como gíria. Imaginem a cena: Um surfista da zona sul carioca, para tirar onda (já que estamos falando de surfistas) com um companheiro de prancha menos letrado, e que acabou de escorregar numa frase, faz o seguinte comentário, em tom de gozação: “Pô, brother, nu esculacha a flor-do-Lácio!” Improvável? Talvez. Seja como for, tenho cá minhas dúvidas sobre quantos, dos tantos que se utilizam da famosa citação, conhecem, de fato, o seu significado.
Não sei por que, mas sempre achei que esta frase tivesse sua origem na península ibérica. Se alguém me perguntasse, sem vacilar apontaria Camões como seu autor, e situaria o Lácio em terras lusitanas. Porém, após uma análise mais detida, percebi que essa interpretação falhava em ligar todas as peças do conjunto, e decidi pesquisar. Minhas suspeitas logo se confirmaram. O Lácio realmente fez parte de uma península, mas não a ibérica. Vamos por partes. Não ponhamos o carro na frente dos bois.
Minha primeira descoberta caiu sobre a real autoria da frase. Trata-se do primeiro verso de um belíssimo soneto do poeta parnasiano Olavo Bilac, intitulado Língua Portuguesa. Mas isso só esclareceu parte da dúvida. Restava determinar a localização exata do Lácio. Além do que, o verso ainda continha dois adjetivos de significado nebuloso, última e inculta.
A fim de decifrar o enigma, precisei recorrer aos historiadores, pois o nascimento da língua portuguesa, como não poderia deixar de ser, está ligado de forma indissolúvel ao processo de constituição da Nação Portuguesa.
O Lácio, na verdade — e sei que muitos ficarão admirados —, localizava-se na região central da Itália, onde vivia um povo que falava o latim. Nessa região, posteriormente, fundou-se a cidade de Roma (Alguém já ouviu falar?). Este povo foi crescendo, anexando territórios, até se transformar — para encurtar a história — no grande Império Romano que, a cada nova conquista, impunha aos povos vencidos seus hábitos, instituições e, claro, sua língua, o latim.
Acontece que, em Roma, existiam duas modalidades do latim: o latim vulgar e o latim clássico. O vulgar era somente falado, era a língua do cotidiano, usada pelo povo analfabeto da região central da atual Itália e províncias: soldados, marinheiros, artífices, agricultores, barbeiros, escravos, etc. Era a língua coloquial, viva, sujeita a alterações freqüentes, e que apresentava diversas variações. Já o latim clássico era a língua falada e escrita, apurada, artificial, rígida, instrumento literário usado pelos grandes poetas, prosadores, filósofos e retóricos.
Agora, tentem adivinhar qual desses sabores de latim pegou, o dos literatos, ou o do povo? Naturalmente que o do povo, pois a língua é uma entidade dinâmica, viva, e a ninguém se submete. Existe uma regra de ouro na lingüística que diz: "só existe língua se houver seres humanos que a falem". Pois bem, o número de falantes do latim vulgar era infinitamente maior, o que o fazia impor-se naturalmente.
Entretanto, como os povos vencidos eram diversos, e falavam línguas diferenciadas, o latim vulgar foi sofrendo alterações ao longo do tempo, alterações estas que viriam a resultar no surgimento das diferentes línguas neolatinas, como hoje as conhecemos.
Foi assim que, no século III a.C., os romanos invadiram a região da Península Ibérica, domínio esse que não foi apenas territorial, mas também cultural. No decorrer dos séculos, eles abriram estradas ligando a colônia à metrópole, fundaram escolas, organizaram o comércio, levaram o cristianismo aos nativos. Essa ocupação se estendeu até o século V da era cristã, tempo em que uma nova língua foi se formando, fruto da convivência ente o latim e os dialetos falados na região da lusitânia. A ligação com a metrópole sustentava a unidade da língua, evitando a expansão das tendências dialetais, e ao latim foram sendo anexadas palavras e expressões dos dialetos nativos. Nossa língua começava a botar as manguinhas de fora.
Posteriormente, a península ainda veio a sofrer novas invasões: vieram os povos bárbaros germânicos, depois os árabes e, por último, os hispânicos. Contudo, embora bárbaros, árabes e hispânicos tenham lá permanecido por longos períodos, a influência que exerceram na língua foi pequena, ficando restrita ao léxico, pois o processo de romanização fora muito intenso.
A história prossegue e, com a independência de Portugal, no século XII, esse dialeto ganha status de língua (afinal — alguém disse —, uma língua nada mais é do que um dialeto com exército e frota) e, em 1290, com a fundação da Escola de Direitos Gerais pelo então rei D. Diniz, o uso oficial da língua portuguesa torna-se obrigatório por decreto. Finalmente, com o advento das grandes navegações e a invenção da imprensa, o português se solidificou em algo próximo do que hoje conhecemos.
Após este breve e ultra-resumido passeio pela história, acho que já podemos juntar as peças do quebra-cabeça oferecido por Bilac. Então, vejamos: flor-do-Lácio, porque foi na região do Lácio que o latim nasceu, logo depois servindo de base para a formação do nosso idioma. Inculta, porque nasceu do latim vulgar. Última, creio eu, porque só veio a se tornar a língua oficial de Portugal em 1290, o que fez dela, provavelmente, a derradeira língua neolatina a se estabelecer nesse nosso pequeno planeta azul.
E salve a Língua Portuguesa, nossa mais bela flor.




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