Sempre tive curiosidade de entender, integralmente, a famosa frase tão citada pelos escritores, poetas, jornalistas e homens cultos em geral: “Última Flor-do-Lácio, inculta e bela”. A expressão Flor-do-lácio, como um sinônimo para a língua portuguesa, há tempos já se tornou lugar comum entre os literatos, e a tal ponto se popularizou que não vejo longe o tempo em que será usada como gíria. Imaginem a cena: Um surfista da zona sul carioca, para tirar onda (já que estamos falando de surfistas) com um companheiro de prancha menos letrado, e que acabou de escorregar numa frase, faz o seguinte comentário, em tom de gozação: “Pô, brother, nu esculacha a flor-do-Lácio!” Improvável? Talvez. Seja como for, tenho cá minhas dúvidas sobre quantos, dos tantos que se utilizam da famosa citação, conhecem, de fato, o seu significado.
Não sei por que, mas sempre achei que esta frase tivesse sua origem na península ibérica. Se alguém me perguntasse, sem vacilar apontaria Camões como seu autor, e situaria o Lácio em terras lusitanas. Porém, após uma análise mais detida, percebi que essa interpretação falhava em ligar todas as peças do conjunto, e decidi pesquisar. Minhas suspeitas logo se confirmaram. O Lácio realmente fez parte de uma península, mas não a ibérica. Vamos por partes. Não ponhamos o carro na frente dos bois.
Minha primeira descoberta caiu sobre a real autoria da frase. Trata-se do primeiro verso de um belíssimo soneto do poeta parnasiano Olavo Bilac, intitulado Língua Portuguesa. Mas isso só esclareceu parte da dúvida. Restava determinar a localização exata do Lácio. Além do que, o verso ainda continha dois adjetivos de significado nebuloso, última e inculta.
A fim de decifrar o enigma, precisei recorrer aos historiadores, pois o nascimento da língua portuguesa, como não poderia deixar de ser, está ligado de forma indissolúvel ao processo de constituição da Nação Portuguesa.
O Lácio, na verdade — e sei que muitos ficarão admirados —, localizava-se na região central da Itália, onde vivia um povo que falava o latim. Nessa região, posteriormente, fundou-se a cidade de Roma (Alguém já ouviu falar?). Este povo foi crescendo, anexando territórios, até se transformar — para encurtar a história — no grande Império Romano que, a cada nova conquista, impunha aos povos vencidos seus hábitos, instituições e, claro, sua língua, o latim.
Acontece que, em Roma, existiam duas modalidades do latim: o latim vulgar e o latim clássico. O vulgar era somente falado, era a língua do cotidiano, usada pelo povo analfabeto da região central da atual Itália e províncias: soldados, marinheiros, artífices, agricultores, barbeiros, escravos, etc. Era a língua coloquial, viva, sujeita a alterações freqüentes, e que apresentava diversas variações. Já o latim clássico era a língua falada e escrita, apurada, artificial, rígida, instrumento literário usado pelos grandes poetas, prosadores, filósofos e retóricos.
Agora, tentem adivinhar qual desses sabores de latim pegou, o dos literatos, ou o do povo? Naturalmente que o do povo, pois a língua é uma entidade dinâmica, viva, e a ninguém se submete. Existe uma regra de ouro na lingüística que diz: "só existe língua se houver seres humanos que a falem". Pois bem, o número de falantes do latim vulgar era infinitamente maior, o que o fazia impor-se naturalmente.
Entretanto, como os povos vencidos eram diversos, e falavam línguas diferenciadas, o latim vulgar foi sofrendo alterações ao longo do tempo, alterações estas que viriam a resultar no surgimento das diferentes línguas neolatinas, como hoje as conhecemos.
Foi assim que, no século III a.C., os romanos invadiram a região da Península Ibérica, domínio esse que não foi apenas territorial, mas também cultural. No decorrer dos séculos, eles abriram estradas ligando a colônia à metrópole, fundaram escolas, organizaram o comércio, levaram o cristianismo aos nativos. Essa ocupação se estendeu até o século V da era cristã, tempo em que uma nova língua foi se formando, fruto da convivência ente o latim e os dialetos falados na região da lusitânia. A ligação com a metrópole sustentava a unidade da língua, evitando a expansão das tendências dialetais, e ao latim foram sendo anexadas palavras e expressões dos dialetos nativos. Nossa língua começava a botar as manguinhas de fora.
Posteriormente, a península ainda veio a sofrer novas invasões: vieram os povos bárbaros germânicos, depois os árabes e, por último, os hispânicos. Contudo, embora bárbaros, árabes e hispânicos tenham lá permanecido por longos períodos, a influência que exerceram na língua foi pequena, ficando restrita ao léxico, pois o processo de romanização fora muito intenso.
A história prossegue e, com a independência de Portugal, no século XII, esse dialeto ganha status de língua (afinal — alguém disse —, uma língua nada mais é do que um dialeto com exército e frota) e, em 1290, com a fundação da Escola de Direitos Gerais pelo então rei D. Diniz, o uso oficial da língua portuguesa torna-se obrigatório por decreto. Finalmente, com o advento das grandes navegações e a invenção da imprensa, o português se solidificou em algo próximo do que hoje conhecemos.
Após este breve e ultra-resumido passeio pela história, acho que já podemos juntar as peças do quebra-cabeça oferecido por Bilac. Então, vejamos: flor-do-Lácio, porque foi na região do Lácio que o latim nasceu, logo depois servindo de base para a formação do nosso idioma. Inculta, porque nasceu do latim vulgar. Última, creio eu, porque só veio a se tornar a língua oficial de Portugal em 1290, o que fez dela, provavelmente, a derradeira língua neolatina a se estabelecer nesse nosso pequeno planeta azul.
E salve a Língua Portuguesa, nossa mais bela flor.
Não sei por que, mas sempre achei que esta frase tivesse sua origem na península ibérica. Se alguém me perguntasse, sem vacilar apontaria Camões como seu autor, e situaria o Lácio em terras lusitanas. Porém, após uma análise mais detida, percebi que essa interpretação falhava em ligar todas as peças do conjunto, e decidi pesquisar. Minhas suspeitas logo se confirmaram. O Lácio realmente fez parte de uma península, mas não a ibérica. Vamos por partes. Não ponhamos o carro na frente dos bois.
Minha primeira descoberta caiu sobre a real autoria da frase. Trata-se do primeiro verso de um belíssimo soneto do poeta parnasiano Olavo Bilac, intitulado Língua Portuguesa. Mas isso só esclareceu parte da dúvida. Restava determinar a localização exata do Lácio. Além do que, o verso ainda continha dois adjetivos de significado nebuloso, última e inculta.
A fim de decifrar o enigma, precisei recorrer aos historiadores, pois o nascimento da língua portuguesa, como não poderia deixar de ser, está ligado de forma indissolúvel ao processo de constituição da Nação Portuguesa.
O Lácio, na verdade — e sei que muitos ficarão admirados —, localizava-se na região central da Itália, onde vivia um povo que falava o latim. Nessa região, posteriormente, fundou-se a cidade de Roma (Alguém já ouviu falar?). Este povo foi crescendo, anexando territórios, até se transformar — para encurtar a história — no grande Império Romano que, a cada nova conquista, impunha aos povos vencidos seus hábitos, instituições e, claro, sua língua, o latim.
Acontece que, em Roma, existiam duas modalidades do latim: o latim vulgar e o latim clássico. O vulgar era somente falado, era a língua do cotidiano, usada pelo povo analfabeto da região central da atual Itália e províncias: soldados, marinheiros, artífices, agricultores, barbeiros, escravos, etc. Era a língua coloquial, viva, sujeita a alterações freqüentes, e que apresentava diversas variações. Já o latim clássico era a língua falada e escrita, apurada, artificial, rígida, instrumento literário usado pelos grandes poetas, prosadores, filósofos e retóricos.
Agora, tentem adivinhar qual desses sabores de latim pegou, o dos literatos, ou o do povo? Naturalmente que o do povo, pois a língua é uma entidade dinâmica, viva, e a ninguém se submete. Existe uma regra de ouro na lingüística que diz: "só existe língua se houver seres humanos que a falem". Pois bem, o número de falantes do latim vulgar era infinitamente maior, o que o fazia impor-se naturalmente.
Entretanto, como os povos vencidos eram diversos, e falavam línguas diferenciadas, o latim vulgar foi sofrendo alterações ao longo do tempo, alterações estas que viriam a resultar no surgimento das diferentes línguas neolatinas, como hoje as conhecemos.
Foi assim que, no século III a.C., os romanos invadiram a região da Península Ibérica, domínio esse que não foi apenas territorial, mas também cultural. No decorrer dos séculos, eles abriram estradas ligando a colônia à metrópole, fundaram escolas, organizaram o comércio, levaram o cristianismo aos nativos. Essa ocupação se estendeu até o século V da era cristã, tempo em que uma nova língua foi se formando, fruto da convivência ente o latim e os dialetos falados na região da lusitânia. A ligação com a metrópole sustentava a unidade da língua, evitando a expansão das tendências dialetais, e ao latim foram sendo anexadas palavras e expressões dos dialetos nativos. Nossa língua começava a botar as manguinhas de fora.
Posteriormente, a península ainda veio a sofrer novas invasões: vieram os povos bárbaros germânicos, depois os árabes e, por último, os hispânicos. Contudo, embora bárbaros, árabes e hispânicos tenham lá permanecido por longos períodos, a influência que exerceram na língua foi pequena, ficando restrita ao léxico, pois o processo de romanização fora muito intenso.
A história prossegue e, com a independência de Portugal, no século XII, esse dialeto ganha status de língua (afinal — alguém disse —, uma língua nada mais é do que um dialeto com exército e frota) e, em 1290, com a fundação da Escola de Direitos Gerais pelo então rei D. Diniz, o uso oficial da língua portuguesa torna-se obrigatório por decreto. Finalmente, com o advento das grandes navegações e a invenção da imprensa, o português se solidificou em algo próximo do que hoje conhecemos.
Após este breve e ultra-resumido passeio pela história, acho que já podemos juntar as peças do quebra-cabeça oferecido por Bilac. Então, vejamos: flor-do-Lácio, porque foi na região do Lácio que o latim nasceu, logo depois servindo de base para a formação do nosso idioma. Inculta, porque nasceu do latim vulgar. Última, creio eu, porque só veio a se tornar a língua oficial de Portugal em 1290, o que fez dela, provavelmente, a derradeira língua neolatina a se estabelecer nesse nosso pequeno planeta azul.
E salve a Língua Portuguesa, nossa mais bela flor.
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