domingo, 22 de agosto de 2010

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FILOBÔNIO FILÓ - parte 10

- filó cozinheiro

Tomates, cebolas, farinha de trigo, mil temperos. Panelas
frigideiras caçarolas. Entre tudo isso, avental amarrado na cintura,
a galante figura do engenhoso cozinheiro Dom Filó.
Com um livro de receitas na mão, imagina-se não um simples
cozinheiro do trivial – e muito menos um chef da gastronomia
francesa. Imagina-se, isso sim, um verdadeiro alquimista medieval,
um mágico poderoso capaz de transformar os mais prosaicos
ingredientes na mais fina iguaria.
Com isso na cabeça, Filó vai seguindo as instruções: cebola
bem picadinha, dois dentes de alho, cheiro verde pimenta
malagueta et cetera. Uma colher de manteiga de garrafa. Fino
azeite de oliva. E misture tudo e leve ao fogo baixo para dourar.
Acrescente então a buchada de bode previamente fervida e bom
apetite!
Buchada de bode? Filó faz o sinal da cruz, joga o livro de
receitas pela janela e desaparece pela porta da rua. Só vamos
reencontrá-lo duas esquinas acima, avental ainda na cintura, as
mãos e a boca ocupadas com um mais que divino cachorro-quente.

- o concerto de música antiga

Com o saco bem cheinho de tanta música eletrônica, de tanto
tecno-pop e outros papos, Filó resolve (depois de tomar meia dúzia
de refrigerantes por causa do calor) ir ao Teatro Municipal para um
concerto de música antiga.
Instalado numa confortável e ridícula poltrona de veludo
marrom, ele confere o programa: Il Trotto (século XII), Galharda
(século XVI), Moteto Allá Psalite Cum Luya (sabe-se lá de quando),
entre outras peças de equivalente antiguidade. Agora sim os meus
ouvidos terão o merecido descanso – é o que ele pensa, antevendo
o espetáculo.
No entanto, no mesmo momento em que os músicos (nada
antigos, por sinal) ocupam o palco com suas flautas doces e violas
da gambá, com seus alaúdes e tralhas do gênero, um desesperado
Filó começa a suar frio por causa dos gases que se debatem em seu
interior. Com medo do vexame, ele respira fundo, cobre a boca
com as duas mãos mas nada disso é capaz de conter a força da
natureza. Após um breve silêncio que parece durar mil anos, o
palco é finalmente atingido por um ronco grave e demorado que se
libera da terceira fila:
- ARRRRRRRRROOOOOOOOOOUUUUUUTOO!
Depois do intempestivo abalo sísmico, a Filó só resta mesmo
uma única saída digna: meter-se embaixo da poltrona. Um dos
músicos, porém, longe de se sentir ofendido, outra coisa não faz a
não ser puxar os aplausos para a original e desconcertante
performance, no que é seguido de perto pelos demais
companheiros de ofício e também pela refinada platéia, que
agora, refeita do susto, já consegue identificar no deselegante
arroto remotos traços de uma sublime intenção musical.

- jogo de cintura

A prova é de 100 metros rasos. O atleta contra a máquina. O
mundo inteiro aposta na máquina. Mas quem vence é o atleta.
- Faltou preparo – justifica-se a máquina.
Em casa, diante da TV, Filó sentencia:
- Faltou jogo de cintura, isso sim!

- filosóficas IX

- com quantas mentiras parciais se constrói uma verdade
absoluta?

- os seres da escuridão

Depois de um dia inteiro, a noite, enfim, se aproxima. Traz
consigo o perfume adocicado das flores noturnas, o romantismo
que envolve os casais, a antiqüíssima poesia das estrelas – e
também o medo de contrapeso.
Cauteloso, Filó repete o mesmo ritual de todas as noites:
tranca bem trancado o portão da rua, passa o cadeado no portão
intermediário, acorrenta com vontade o portão dos fundos. E mais:
confere as janelas uma a uma, na porta da sala aciona as seis
travas, a elas acrescenta quatro fechaduras de duas voltas e
completa as medidas de segurança encostando à porta um grosso e
pesado hipopótamo de chumbo, presente mais que oportuno de
uma antiga namorada.
Depois disso tudo – e só assim -, é que Filó consegue ir para a
cama em paz. Todos os cadeados e correntes, porém, todas as
medidas de segurança não são capazes de deter os pesadelos.
Neles, um Filó indefeso é constantemente assaltado pela violência
urbana, pelos seres da escuridão que não respeitam nem ao menos
o seu direito de sonhar.

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